domingo, 31 de outubro de 2004

TIJUCA

De Aldir Blanc


Eu já escrevi em algum lugar que a Tijuca é um estado... de sítio. O tijucano é um sitiado. Não tanto pela crescente violência. O tijucano é, por natureza, perdido como uma bala. Com seu amor peculiar pelo bairro, sitia a si mesmo.
Inúmeras vezes, um tijucano já foi flagrado, eufórico, no buteco (ponto para o bairro: a Tijuca é pródiga em butecos seletos), anunciando aos quatro ventos:
— Adeus, Tijuca! Tô indo pro Leblon!
Meses depois da mudança, é visto, disfarçado, pelas esquinas da Tijuca, suspirando. Se você o aborda, ri amarelo, fala da superioridade do Leblon, da praia, do comércio, das opções culturais, das... (está prestes a chorar) das... das mulheres.
É só dar o golpe de misericórdia:
— Tá com saudade, hein?
Em menos de um mês, o cara volta. É verdade que volta com o ressentimento ambíguo próprio do tijucano. No papo, quando faz a fezinha, tenta botar banca:
— Eu já morei no Leblon...
O tijucano é um emergente que não deu certo. Por sua própria culpa. Na praia, cervejinha em punho, cercado de tangas, suava frio ao ouvir o chamado atávico da floresta. Dizem que na hora de levar o suculento naco de lagosta à boca, instalado no mais caro restaurante do Leblon, sentia saudade da tímida barata que o fitava, humilde, num cantinho da pizzaria tijucana. Gente maldosa garante que ele cumprimentava, discretamente, a barata: oi, Dulce Marguerita (o nome é uma singela homenagem à pizza de sua predileção).
O tijucano é antes de tudo um porte. Uma pose. Uma figura. Um extra fazendo bico no próprio filme. Na imortal imagem de Nelson Rodrigues, um contínuo de si mesmo. Uma caricatura. Mas sua cidade também é. Superar a caricatura que fazemos de nós mesmos, rindo dela, é nossa força.
Vejam as mulheres: ralam, batalham, suam a camisa e as calcinhas, mas, à frente da bateria, não tem graça como a da tijucana. É daquelas mulheres sábias que acompanharam o essencial da modernidade sem esquecer as lições da vovó. Em suma: dão prazerosamente,mas, enquanto nos beijam, murmuram: não... não... ai!
Agentes provocadores espalham, em Copacabana, que existem algumas ruas, na Tijuca, em que mora um ex-torturador para cada vinte habitantes (e desses, mais da metade apoiava, ainda que por omissão, o que o monstro fazia na época da ditadura). Não é verdade. Qualquer solar oculta um porão. O importante é nossa vontade de escancará-lo, remover a sujeira, deixar a luz entrar.
Hoje, fala-se em Grande Tijuca, que englobaria o Estácio, berço do samba, a Vila Isabel, imortalizada por Noel Rosa, Aldeia Campista, Andaraí-no-seu-Gramado, a Usina, o Grajaú (que não se conforma e está cheio de “separatistas”de nariz empinado).
Só pra encerrar, na Grande Tijuca estão o Templo do Futebol, o Maracanã, um dos grandes Santuários de nossa Cultura Popular, a Acadêmicos do Salgueiro, o Instituto de Educação, monumento vivo e inesquecível à... à... bom, deixa essa parte pra lá.
Agora me ocorre que, apesar de tanto empenho desperdiçado, de tantas crenças traídas, de tantas pérolas atiradas aos porcos, o tijucano permanece grávido, contra tudo e contra todos, de uma injustificada esperança-equilibrista: a Tijuca é um estado interessante!
Parafraseando um samba que eu fiz com o Cláudio Jorge:
Quando eu deixar a Tijuca
sinto que o Céu não irá me agradar
pois não basta um Paraíso inteiro
pra saudade que Tijuca dá...



sábado, 30 de outubro de 2004

Cavalgada (1977)

Roberto Carlos - Erasmo Carlos

Vou cavalgar por toda a noite
Por uma estrada colorida
Usar meus beijos como açoite
E a minha mão mais atrevida
Vou me agarrar aos seus cabelos
Pra não cair do seu galope
Vou atender aos meus apelos
Antes que o dia nos sufoque
Vou me perder de madrugada
Pra te encontrar no meu abraço
Depois de toda cavalgada
Vou me deitar no seu cansaço
Sem me importar se nesse instante
Sou dominado ou se domino
Vou me sentir como um gigante
Ou nada mais do que um menino
Estrelas mudam de lugar
Chegam mais perto só pra ver
E ainda brilham de manhã
Depois do nosso adormecer
E na grandeza desse instante
O amor cavalga sem saber
Que na beleza dessa hora
O sol espera pra nascer
Estrelas mudam de lugar
Chegam mais perto só pra ver
E ainda brilham na manhã
Depois do nosso adormeceeeeeeeeeeeeer!!

...para Insuportááável, Font, Rod&TeddyBear, Armani, Ismênia, Florber, Aldo, Magnólia, com capeta, Água da Bica, pimenta-cereja, catuaba, catuaba-aba-aba-uca (hic!), e a dúvida que não quer calar: alguém anotou a placa?? :)
PS: Não, não dá pra comparar o amanhecer do subúrbio. No mar o dia vem chegando. Na Zona Norte ele rebenta. A redenção, ao contrário da crença inicial, é mesmo impossível. Pelo conjunto da obra.

terça-feira, 26 de outubro de 2004

http://www.fractalus.com/cgi-bin/glist Posted by Hello

Insônia II - De como encarar o dia

Trilha: You are so beautiful - Joe Cocker

Ao ver o carro se afastar na estrada, levantando a poeira de barro seco, ela já sabia. Ele havia partido para sempre.

(You are so beautiful to me)

Senta-se na varanda e fica olhando o mar. Do alto da colina, é uma imensidão de água, uma tão grande que mais parece que o céu havia se deixado inundar. Mas algum impulso esquisito não a permite manter os olhos erguidos. A vista parece pregada na ardósia, nas pequenas formigas, nos próprios pés... do pé para a ardósia, da formiga para a franja da rede, da rede para o pé. Não é dor, nem saudade, nem angústia. Nem raiva.

Parecia mais com uma sensação penosa de humilhação. Está morta de vergonha. Mas do quê? E por quê?

(Can´t you see?)

Ele é que devia envergonhar-se. Passara a noite acordada ouvindo os barulhos que vinham da sala. Ou da cozinha. Ou da garagem. Os de todos os cantos. Ele quebrou a casa inteira. Com a talvez covarde exceção dos janelões de vidro, ele destruiu tudo. Copos, pratos, garrafas de cerveja (as de uísque ele bebeu), o rádio, dois abajures... No chão havia pedaços de coisas impossíveis de identificar, junto a restos de comida, poças meladas. Prateleiras foram derrubadas, livros rasgados.

(Such joy and happiness you bring, like a dream…)

Trancada no quarto, agarrada no travesseiro, ela tentava decifrar os sons. “Agora foi-se o espelho do banheiro”. De tempos em tempos, como se ele cansasse, só ouvia o silêncio e era aí que realmente se assustava. No entanto, ao contrário do que esperou a madrugada inteira, ele não chegou nem perto da porta. Sequer chamou por ela, ou pronunciou seu nome uma única vez. Dele só um som lamurioso, rouco e lancinante. Ele estava cego, surdo, alheio e enlouquecedoramente sozinho.

(You are everything I hoped for, everything I need)

Entre um prato e uma samambaia da varanda atirada sobre algo metálico (teria sido o teto do carro?), ela abrira a gaveta pensando em tomar uma meia dúzia de Lorax. Mas sabia que assim que o sol nascesse, ele pararia. Faltavam poucas horas. Resolveu esperar.

Alguns silêncios e uivos depois, ouviu o carro ser ligado, o som de arrancada e pneus cantando.

É... Suspira. Tenta novamente encarar o lindo dia de sol, o céu azul e... os olhos enchem-se de lágrimas e ela baixa de novo a cabeça. É mesmo vergonha. Não de ter se escondido, não de ter se trancado no quarto. Talvez, quem sabe, pudesse ter chamado ajuda, ter atirado-lhe uma cadeira, ou mesmo quebrado uma garrafa de Concha Y Toro no alto de sua cabeça. Não é nada disso. É vergonha de si mesma, apesar da certeza de não ter feito nada de errado, nada que pudesse ser apontado, nomeado, condenado. Vergonha de achar, ainda assim, em algum lugar lá no fundo, que ela bem que merecia. Ah, merecia... E ainda ia arrepender-se um bocado, seja lá o que fosse.

(You are so beautiful to me…)

Quatro horas da manhã

Isso não era hora de aparecer.
Eu estou começando a implicar com essa hora, quatro horas, hora-morta, hora-sempre, hora-awake.
Vou começar a pular de 3:30 para 5:30.
Duas horas a menos de sono? Não. Duas horas a menos no limbo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Unicornio

Interprete e Autor: Silvio Rodrigues
G7+ Bm
Mi unicornio azul ayer se me perdió
Am C7+ G7+
Pastando lo dejé y desapareció
Bm C7+ Bm
Cualquier información bien la voy a pagar
Am C6 Bm Am7 D7 D7/4
Las flores que dejo, no me hen querido hablar
G7+ Bm E7
Mi unicornio azul ayer se me perdió
Am C7+ G7+
No se si se me fué, no se si se extravió
Bm C Bm
Y yo no tengo más que um unicornio azul
Am G7+Em
Si alguien sabe de él,le ruego información
C7+ Cm G7+
Cien mil o un millón yo pagaré
G D/F# Em E7 C D7 D7/4
Mi unicornio azul, se me pedido ayer,
G7+
Se fue...

Solo: G Bm C Em/C Am7 D7 D7/4 D G

G7+ Bm
Mi unicornio azul y yo hicimos amistad
Am C7+ G7+
Un poco com amor, un poco com verdad
Bm C Bm
Com su cuerno de anil pescaba una canción,
Am C Am D7 D7/4
Saberla conpartir era su vocación.
G7+ Bm
Mi unicornio azul ayer se me perdió
Am C7+ G7+
Y puede parecer acaso una obsesión
Bm C6 Bm
Pero no tengo más que un unicornio azul
Am G7+ Em
Y aunque tuviera dos, yo solo quiero aquel.
C7+ Cm G7+
Cualquier información la pagaré
G D/F# Em E7 C Am D7 D7/4
Mi unicornio azul se me ha perdido ayer,
G7+
Se fue...

CANÇÃO DA MANHÃ ETERNA

Maior que meu silêncio é o meu cansaço.
Maior que meu cansaço é o meu desejo.
Maior que meu desejo é o silêncio.
Sonhei com mudas de azaléia, pés de boldo-do-chile, sonoras madrilenhas, secas poetisas, um quarto no escuro e uma penca de motivos.
Tinha desenho de graveto na areia, metade da vida passando, vôo baixo de água marinha.
Tinha cheiro de beijo, gosto de arrepio, uma manhã imensa que não cansava de acordar.
Vi um turbilhão de fotografias, uma revoada de vaga-lumes, lumes, lumes, vagos como a lembrança.
Com a presumível ausência estampada no resto dos meus dias, teci com fios de rede a seda de dormir. Pendurei na janela os rolos de rios, bem do lado do tênis encardido.
Quando parecia que a manhã ia acabar, a tarde sentou com a noite pra conversar, falar de futebol, trocaram os números de seus celulares e cantaram trôpegas “luminosa manhã, pra que tanta luz...” E a manhã ficou ali suspensa por um bem-me-quer.
Eu acordei. E ainda era dia.

domingo, 24 de outubro de 2004

VAAAAASCOOOOOO!!!!

Hoje é dia de dormir o sono dos justos. :)

sábado, 23 de outubro de 2004

UFANIA

Meu anjo da guarda
Tem pouco cabelo,
Só bebe Balla 12,
Tem horror a espelho,
Cita Nietzche no original,
Tem mania de bater porta,
Um desamparo fatal
E pensa que é avestruz.

Meu anjo da guarda
Tem que tomar-se a si,
Parar de fumar,
E perder o medo
De altura e de riscar fósforo,
De ir ao cinema e de elevador,
De janela de treliça
E de acordar muito cedo.

Mas tem um momento do dia
Que ele vira pra dentro
Começa a chover-se
De tanta emoção.
Pode chamar e pedir e rogar
Lá de si ele não sai.
Eu que me pele ou me rasgue
Se houver precisão.

Bem no fundo do olho,
Se você prestar bastante atenção,
Vai ver a Esquadra de Malta
Em dia de glória.
Um time que você nunca verá
Que o anjo faz questão
De inventar.
Até difícil de acreditar.

Se eu for falar da Esquadra,
O meu tempo não dá.
E se o anjo é anjo,
Avestruz ou caído,
Não há quem não perdoe,
Ou ao menos compreenda,
Um caso perdido.

Pra ser vascaíno
Não basta vontade,
Sermão nem exemplo,
É preciso coragem.
Só leva um instante,
Nem mais que um momento
Pra esse amor beluíno
Tomar um coração bailarino.

Um anjo caído
Não seria tão genuíno
Se antes de custódio
Não fosse Januário.
Se antes de depois
Se esquecesse do Romário,
E se, enquanto deus-menino,
Fosse outra coisa
A não ser um vascaíno.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Beatriz Milhazes - O Prí­ncipe Real Posted by Hello

(suspiro)

Essa vai ser uma longa, longa semana. Eu tenho pressa. Sou uma pessoa tomada de urgências.

Misericórdia

Deus, essa é uma prece desesperada e muito exagerada, pra que teus anjos, Senhor, venham ao meu socorro. Não os branquinhos, cor-de-rosa, redondinhos... Mas os mulambos, rotos, caídos, que de vez em quando desabam. Deus, que eu esbarre com eles ao vagar na rua quando meu carro enguiçar a duas quadras de casa; quando me rasgar de ódio no tédio da síndrome de Wendy e ninguém telefona (quando eu chamar de ninguém o ser amado); quando adoecer de saudade de quem não tem tempo de destemperar-se por quem se desespera. Um anjo, meu Deus! Como aquela que aos três anos perdeu a mãe, fugiu-lhe o pai, casou aos vinte e mais um foi-se o marido, ficou uma criança e um quarto de empregada. Um anjo, Senhor… que desfalque minha miséria com sua própria inópia. Um anjo, Senhor, pra me mostrar grandes e virulentas feridas dantes como as minhas tidas, mas bem mais violentas por sua própria inquietude. Um anjo, senhor, um boêmio azulão, um vagabundo de chapéu coco e algum tipo de verdade. Um anjo, Senhor que não seja perfeito, que me pegue pra si e me traga de volta a tristeza que eu perdi. É só, Senhor, quero estar de volta num retornar distante, ter de novo o poder, perdido, de controlar e superar a caneta e o amante.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Saída de Emergência

Autores: João Bosco, Antônio Cícero & Waly Salomão
Dia e noite
(como posso
explicar
meu bem?)
busco a saída
de emergência
sem achar
Sem ao menos
escutar você mentir
como é que eu posso conseguir
dormir?
Na vida que tracei
alguns meses atrás
já não cabia cataclismas mais
Sua boca
tem um jeito
de fundir
o mais profundo
ao superficial
Nos seus olhos
e maneira
de sorrir
eu vi
o impossível
o possível
o real
Sem ao menos escutar você mentir pra mim
me diz meu bem
como é que eu faço pra dormir?

... dizer alguma coisa hoje só mesmo com as palavras alheias. Eu mesma estou muda de ausência e surda de tanto ouvir o passado bater no meu ouvido. Dia e noite, insone. O que eu não daria agora pra estar no único lugar onde eu dormiria em paz...

Tanto que Aprendi de Amor

Fátima Guedes (mas experimenta com a Alcione...)

Tanto que aprendi de amor na vida
E agora descobri
Que não sei nada mais
Força eu fiz pra ter com esse rapaz
Só boa companhia
Hoje eu gosto demais
Sabe que até falta ele me faz
Sabe que eu tentei não compreender
E dei pra relembrar as coisas más
Pra esquecer

Tanto que aprendi de amor
Tanto, e daí?
Na hora de fugir não me senti capaz
Quero o que me sobra dele em mim
A boa companhia
A vida que ele traz
Força eu fiz mas já não faço mais
Sei onde me leva essa ilusão
Mas não amar também me tira a paz
E a emoção
Você é a coisa mais perfeita e importante da minha vida... É essa a foto do lado direito do cordão que não sai do pescoço, sempre grudada juntinho.  Posted by Hello

Quem ri por último...

pra vó, pelo aniversário.

Helena e Victor eram casados há mais de trinta anos contra todas as mais otimistas expectativas. Os amigos sempre insistiram em dizer que não ia durar, que era uma temeridade os dois estarem juntos. Brigavam muito. Ele morria de medo do temperamento explosivo dela, chamava a mulher de Eminência, a “eminência da catástrofe”. Ela tinha horror aos silêncios, achava o marido um egoísta de marca maior.
As famílias, muito tradicionais e das mais importantes da sociedade carioca (apesar de decadentes e falidas), arranjaram o casório quando os dois ainda eram muito jovens. Helena já havia se conformado com o arranjo, mas também não deu o braço a torcer: só conheceria o noivo às vésperas da cerimônia. Não queria nem olhar. As primas marcavam em cima, “deixa vir jantar e pelo menos espia pela cortina, boba”. Helena, irredutível, recusava. “Se eu o vir antes das bodas, não caso”.
Marcaram o jantar fatídico um mês antes da cerimônia. Victor foi logo avisando: “mulher minha tem que ter modos”. A moça achou um despropósito a afirmativa. Tanta coisa mais importante pra dizer e ele se saía com essa pérola. Deu graças por não ter aturado um noivado arrastado, com beija-mão na sala e outras bobagens. Era uma mulher prática.
O primeiro ano foi uma catástrofe. Na cama, não se entendiam. Era tão ruim que ela tinha vontade de usar lençol, daqueles com buraco no meio. Socialmente, outro horror. Ele tinha vergonha, fazia de tudo pra evitar levá-la a festas, jantares ou qualquer compromisso que não fosse restrito às famílias. Reclamava que era ríspida, a grosseria em pessoa, não sabia entabular uma conversa, um bicho. Confidenciou ao irmão: “isso não é uma mulher, é um mau agouro”. Choviam conselhos de todas as direções: separa de uma vez; arranja um amante, sua tonta; finge uma asma; vai visitar tua tia e fica por lá; água de azeitona é ótima pra não ter filho, toma uma colher de chá toda vez; arranja uma amante, sua besta, arranja trinta; muda o escritório pra São Paulo; pára de tomar banho... Victor deixava pra lá os pitacos dos outros, já tinha descoberto a maior qualidade da esposa: gostava de futebol e por isso mesmo nem ligava quando ele dizia que ia pro Maracanã. Na verdade, Helena achava ótimo, só assim podia ouvir o jogo quieta, sem aturar os palavrões do marido. Ligava o rádio enquanto ia cuidar das roupas. Victor só estranhava ela não torcer pra time nenhum, afirmando sempre que predileção era coisa de ignorante, o esporte é que era bom. Se prender a um time só era como almoçar todo dia a mesma coisa.
O tempo foi passando e a poeira foi assentando. O que era um suplício, virou apenas uma poça de monotonia. Foi aí que apareceu o Juracy. Veio fazer obra no muro do quintal. Já na primeira semana tomou-se de amores por Helena e inventou um problema no terreno, disse que era arenoso, que o muro ia ter de ser todo posto abaixo e refeito, só por pretexto. Ela já não era menina, mas as coxas bem torneadas, o colo farto, o olhar vivo e o jeito forte na hora de resolver os problemas chamaram a atenção de Juracy, que se derretia todo por dentro, mas sem nunca ter feito movimento algum. Por ele, tanto a amada quanto o patrão ficariam sem saber de nada. Bastava poder estar por perto.
Num domingo, Victor voltou do jogo azedo. O Flamengo tinha perdido pro Vasco, uma vitória que parecia fácil tinha escapado nos quinze minutos finais. Quando chegou em casa, deu de cara com o Juracy cantando o hino do Vascão, todo feliz. Helena, apoiada no tanque, cabelo solto, perna de garça e vestido meio molhado grudado nos seios, sorria de banda. Juracy cantava em ritmo de sambinha e beijava a cruz de malta da camisa, fazendo uma dança engraçada, feito um txucarramãe aprendendo foxtrote. Victor vinha entrando de mansinho, estranhando o barulho, veio sorrateiro, clicou a cena e ficou furibundo. Ele ainda vestindo a camisa do seu amado Flamengo, amargando a derrota e o tal lá, justamente um vascaíno, comemorando, cheio de graça. Estrilou:
— Tá fazendo o quê aí, ô cidadão?
Helena espantada.
— Hoje é domingo, rapaz, domingo... Não é dia de peão trabalhar não. Te fiz uma pergunta. Vai desembuchando...
Helena pasma.
— Doutor, vim pra receber o material que o Miro ficou de mandar... Se num era hoje, só pra semana que vem...
Helena atenta.
— Não te quero na minha casa quando eu não estiver. E você, abriu a porta por que?
Helena bege.
— Parto-lhe a cara, ouviste? Parto-lhe a cara, rapaz! Some daqui, peste, e não precisa voltar nunca mais. Rua, você e esse pano de chão que você chama de camisa.
Helena incrédula.
— Mas doutor... e a obra?
— Some da minha frente com essa merda de camisa! E não me ponha os pés aqui de novo!
O pobre do Juracy saiu arrasado. Tentou voltar uns três dias depois, e deu com os burros n’água. Victor permanecia irredutível e tinha feito do ocorrido sua bandeira para uma nova vida. Transformou-se. Pela primeira vez, ele se dera conta de que esse jeito torto dos dois também era uma forma de amor e a esposa era extremamente importante pra ele. Teve medo, um medo horrível, de perdê-la. Não que houvesse a possibilidade, Helena era mulher séria, seríssima. Mas ainda assim, daquele dia em diante, passou a tratá-la diferente. Fazia-lhe as vontades, adivinhava os desejos, fazia de tudo pra agradar. No entanto continuavam brigando do mesmo jeito... o marido achava que as discussões eram importantes pra quebrar o tédio e ter o gosto de fazer as pazes com um anel ou vestido novo.
Os anos seguintes foram essa gangorra. Um amor meio torto, mas muito sólido. Helena foi, aos poucos, se deixando levar pelos mimos, fazia a sobremesa preferida dele de surpresa, aparava seus cabelos e barba, bancava a manicura, até torcia pro Flamengo, pra desgosto dos tios e primos, todos vascaínos. Vieram os filhos. Vieram os netos. O casamento cada vez mais ao contrário, o amor, o carinho e a devoção aumentando com o tempo. Nas bodas de pérola, pareciam dois adolescentes, implicando um com o outro sem parar e se beijando escondido, quando nenhum convidado estava olhando. “É preciso manter as aparências, meu filho, ninguém põe olho gordo em casamento desavençado”.
Foi mais ou menos quando Victor descobriu que estava doente. A essa altura, viviam praticamente em lua de mel e a notícia chegou surda. Era câncer de mediastino, nada a fazer e muito pouco tempo pra conformar.
No dia do velório, puseram um médico e duas enfermeiras de prontidão. Acharam que Helena ia junto, no mais tardar no dia seguinte. A mulher antes forte, decidida e teimosa feito uma porta era um projeto de pessoa muito mal acabado, nem de longe lembrava aquela que era o arrimo da família. Como um boneco de serragem furado, esvaía-se. Os filhos temiam que não durasse nem até o sepultamento. Na hora de sair da capela com o caixão, ouviram uma voz gritar:
— Victor, meu amor! Daqui ninguém leva meu Victor!
Helena viu a ruiva de quase um metro e oitenta com complexo de Rita Hayworth se debruçar no caixão aos prantos. A capela parecia imersa em nitrogênio, ninguém movia um músculo sequer.
— Victor meu amor... Como você foi me armar essa falseta? Como é que eu vou viver sem você depois de tantos anos? E os nossos filhos, Victor? O que é que eu vou dizer aos meninos? Meu amor... Me leva com você...
Ninguém sabia quem era. Helena estava em choque.
— Victor, fala comigo meu amor! Eu te amo tanto! Eu não vou suportar... Ah, meu mamãozinho...
Mamãozinho foi a gota. Helena, fria como se fosse o próprio defunto, juntou os filhos, os sobrinhos e os irmãos e mandou arrastarem a louca pra fora, que foi aos berros, debatendo-se, gritando coisas incompreensíveis. Uma cena grotesca. As mulheres não sabiam o que fazer nem o que dizer à viúva. Ainda podiam ouvir a ruiva em desespero sendo contida do lado de fora. Alguns queriam até chamar a polícia. O tumulto durou mais de meia-hora e Helena, impávida, mandou carregarem o caixão embora.
— Todo mundo tem mais o que fazer, não é mesmo? Vamos embora com isso. Espera! Abre a tampa de novo que eu quero dizer uma última palavra.
A platéia crispou. É agora que a coitada derruba o finado no chão, ou taca fogo nele.
Helena, impassível, foi até o primo Renan, tomou dele o cordão de ouro, e, fazendo um gesto de cala-a-boca com o dedo na frente dos lábios, caminhou até o caixão em silêncio. Abaixou pra sussurrar ao pé do ouvido do morto. Depositou o que tinha na mão fechada sobre o peito dele e desceu a tampa. Mandou o cortejo sair, mas não acompanhou. Virou as costas e foi embora.
No caminho de casa, a filha mais velha, já não se contendo mais, perguntou:
— Afinal o que foi que a senhora disse ao pai? Por favor, mãe... Me conta. Eu juro que o segredo morre comigo. O que foi que a senhora tirou do primo Renan?
— Você não sabe o que é que teu primo carrega no pescoço? Nunca reparou?
— Não.
— Teu primo carregava, por promessa feita pelo avô na Festa da Penha de 37, uma medalha de Nossa Senhora, uma figa de guiné e um escudo. Foi o escudo que tomei dele. Fiz ao Victor a maior e a única ofensa que era possível, toda a resposta que eu podia dar. Teu pai, minha filha, foi enterrado com o escudo do time do teu primo, o Vasco da Gama. Eu disse a ele que meu desgosto eu vou amargar em vida, mas a minha tá no fim mesmo. O dele que vá junto pela eternidade inteira.
— Mãe!
— E tem mais: a partir de hoje, todos os dias antes do jantar, vamos cantar o hino do Vasco. Vaaaaaaaaaaassscoooo!!
Os filhos nunca tiveram coragem de contrariar a mãe e enquanto ela viveu, todos os dias na Rua Pontes Correa os vizinhos ouviam o coro, pontualmente depois da ave-maria.

Duas cabeças, quantas sentenças.

Sentindo-se mais estranha que ovo cor-de-rosa de butiquim, Maria levantou-se às 3:20 da matina depois de passar um bocado de tempo fritando na cama. Acordou de silêncio. O homem ao lado do qual havia passado as últimas três noites parara de roncar. Normalmente, ele soava firme, compassado e vibrante como a Banda do Corpo de Bombeiros, com Anacleto de Medeiros na regência, oficleide e tudo o mais. Essa noite, sem mais nem menos, parou. Assim de repente. Primeiro, ela achou que ele tinha tido um treco, depois viu que estava respirando, mas aí já não conseguiu voltar a dormir.

Havia ainda o vento. Um vento ventando de assustar, parecia com vários ventos em direções opostas, todos com raiva dela e dispostos a derrubar a casa. Maria não queria ter se levantado. Só o fez por sentir-se presa dentro de uma canção de João Bosco e Aldir Blanc que diz:

Você fica deitada / De olhos arregalados / Ou andando no escuro de penhoar / Não adiantou nada / Cortar os cabelos e jogar no mar / Não adiantou nada o banho de ervas / Não adiantou nada o nome da outra / No pano vermelho pro anjo das trevas / Ele vai voltar tarde / Cheirando a cerveja / Se atirar de sapato na cama vazia / E dormir na hora murmurando / Dora / E você é Maria

Tateou no escuro, rezando pra ele não acordar. Sentada no sofá, se arrependendo do que pode e inventando outros tantos motivos pra continuar ali, num frio de 10 graus esperando Heathcliff aparecer no meio dos ventos uivantes. Tentava se lembrar de como havia se metido nessa angústia. “Preciso dormir. Amanhã é dia de debate no clube”, lembrou, sem se dar conta de que foi exatamente assim que tudo começou.

Não havia muito tempo, nossa insone protagonista se separara de Ivan, o enfant terrible. Sujeito difícil de lidar, sem conflitos, que passava ao largo da vida tão de bem com tudo e todos que irritava. Vascaíno tresloucado, defensor ferrenho do Eurico Miranda, embora alguns amigos dissessem que as duas coisas eram antagônicas. Ivan abandonou Maria sem mais nem menos pra juntar-se a um pequeno grupo que ia para a Serra do Timbiricó caçar um OVNI.

Passados alguns meses, Maria deixava São Januário após uma partida histórica, quando reparou num homem que chorava copiosamente, abraçado num grupo da organizada e cantando o hino. O Edmundo havia feito cinco gols naquele dia. Ela tinha ido por acaso, arrastada pelos primos e agora estava abismada com a figura daquele homem que, apesar dos 40 aparentados, chorava feito um menino. O homem estanca subitamente, pergunta as horas e sai numa carreira desabalada pela rua.

Ela permaneceu ali parada tentando entender o espanto que o desconhecdo causara. Decidiu que iria a todas as partidas do Vascão até conseguir conhecê-lo. O grupo carregava uma enorme bandeira e isso tornaria a empreitada mais fácil.

3 empates, duas vitórias e quatro derrotas depois, ela estava desistindo. Do time, principalmente. Num jogo em que o ataque e a defesa pareciam jogar um contra o outro, ela resolveu afogar as mágoas. Encostou-se ao balcão do bar e quando pediu a cerveja ouviu o conselho: “Eu não faria isso se fosse você. A cerveja, além de ser ruim, está quente. Compra lá fora uma Skol gelada, aproveita e dá um prejuízo nesses putos que é bem feito”. Espantadíssima, Maria olhou pro lado e conheceu, finalmente, depois de três meses de buscas, o Solano.
Descobriram muitas coisas em comum. Além do Vasco, tinha o Salgueiro, as rodas de samba e um leve pendor pra discussões improfícuas. Tornaram-se amigos.

Solano, no entanto, tinha gosto por estratégias. Portava-se como se fosse o único caso insolúvel do Inspetor Maigret, o brilhante detetive de Georges Simenon. Quantas vezes ela não se perguntara o que havia por trás das evasivas, pra onde olhava aquele olho que se voltava pra dentro, escrutinando sabe-se lá. Em certos momentos, ele parecia querer protegê-la de um perigo eminente e em outros avançava pra cima dela como se o tal perigo fosse ele próprio. Qd o olhar dele ficava vermelho e marejava era sinal de tempestade. Os dois juntos pareciam uma turba desordenada. Não por causa da absoluta incapacidade de terminar um assunto sequer, sempre engrenando noutro troço diferente, mas pelos fantasmas. Ambos eram criaturas assombradas, que arrastavam atrás de si seus mortos, suas feridas e seus temores. Cada um falando podia ser três ou oito. Ele não confiava nela, ela fingia não perceber. E por isso era atirada, como um barquinho numa tempestade, de um lado pro outro, pra dentro do frio dos fantasmas e da distância de Ivan. Como uma auto-reprimenda, toda vez que Solano se flagrava numa demonstração maior de afeto, ele se impunha uma retaliação, um afastamento, um silêncio. Determinadas coisas, como síndrome de abstinência sexual, falta de dinheiro, cólica de saco e emoção os homens escondem até do cara boa pinta que mora no espelho do banheiro.

Solano andava preocupado com a eleição para a presidência do clube. Fazia longos discursos sobre a camisa nova do time, as obras necessárias ao estádio, cogitava engajar-se na campanha do Roberto Dinamite e sonhava com um movimento de boicote pra forçar uma solução para o problema da cerveja. Maria ouvia com interesse genuíno, mas com a resignação de quem tenta não contrariar o doente por ordens médicas.

Certo dia, a oposição conseguiu organizar no clube um debate entre os dois candidatos, coisa óbvia até em campanha de grêmio estudantil, mas até então impensável no outrora tão revolucionário Vasco da Gama. Os principais cabos eleitorais das campanhas envolveram-se numa acalorada discussão. Um doce pra quem pensou em Solano e Ivan. Maria assistia catatônica. Queria sumir, virar pipa de papel de seda e ir morar num asteróide. Seria uma longa campanha.

Sentada no sofá há horas, Maria tenta pôr as idéias em ordem. Tinha muito que fazer, panfletos, bottons, camisetas, o equipamento de som, tudo pendente às vésperas do debate. Via a imagem de Solano no escuro. A verdade é que ela estava deixando-o aos poucos. Sabia que, dessa vez seria pra sempre. Como uma profecia, brilhava diante dela a expressão “nunca mais”. “Nunca mais”. Era uma questão de instinto de sobrevivência. Muitas perguntas haviam sido feitas e ela não tinha mais a intenção de esperar por respostas que não chegavam. Maria concluiu duas coisas importantes. Primeira: duas pessoas tão assombradas, como ela e Solano, não cabem na mesma cama. Só um grande amor afastaria todos os fantasmas e isso ele não tinha pra dar. Segunda: infelizmente, há ainda menos coisas a separar o Dinamite do Eurico do que arriscaria a mais descrente das filosofias.

“Ah, recomeçar, recomeçar
como canções e epidemias.
Ah, recomeçar como as colheitas,
Como a lua e a covardia.
Ah, recomeçar como a paixão e o fogo
E o fogo, e o fogo...”

domingo, 17 de outubro de 2004

O maior de todos

Trilha: Kissing You - Des’ree

São Pedro do Riachinho. 140 habitantes. Já se pode imaginar o tamanho. Pra chegar, muito buraco, muita lama e quatro horas de dor de cabeça, tendo apenas a paisagem por consolo. Recepção de estrelas na chegada. Olhares curiosos se amontoavam pra ver o pessoal da cidade, que chegava cheio de malas, roupas coloridas, óculos escuros e alguns até de tênis! Deveria ser mais uma cidadezinha do interior, mas não era. Neste lugar aflorou, cresceu e se afirmou O Maior Amor.

A diferença do lugar talvez estivesse no cheiro. Cheiro de paz e de afeto. Uma mistura de pão no forno com leite fresco e a tradicional bosta de vaca. Provavelmente é a tradução perfeita da mistura entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais. De dia, sol e calor, banho de cachoeira, cerveja geladíssima e muito beijo na boca. À noite, chuva, raio, um medo cheio de charme e muita sinfonia de estrado.

Entre um passeio e outro, coisas surpreendentes. Lago de trutas, um gavião solitário, bezerros agindo como cães de guarda e no meio da festa, um vira-lata corre de um homem que late furiosamente.

Cada olhar era um alvorecer. Apenas a magnitude das montanhas era capaz de reconhecer o esplendor de um amor tão surpreendente, que insistia em crescer contra todas as especulações.

Ele um homem bonito, cuja a presença já era suficiente para atrair atenção. Dono de uma inteligência ímpar, caráter irrepreensível e muito charme. Agia de forma um tanto impulsiva, ar de moleque. O jeito de mexer no cabelo era puro descaso com as mortais e um sorriso que era um permanente atentado ao bom senso alheio.

Ela atormentada pelos próprios erros, com uma certa vergonha de ter construído os três anos anteriores, baseados em enganos e futilidades só percebidas diante da novidade. Olhar de veneração e o coração impregnado por um sentimento nelsonrodrigueano de esperar a tragédia no próximo minuto. Entregava-se na cama com paixão ardorosa, sem hesitação nem muralhas e incandescia aos menores toques do amante.

Ele a abraçou pondo seu coração à mostra enquanto ela sentia todo seu corpo extenuado de precipitação. Os lábios se tocam com suavidade até os dentes morderem vorazes enquanto a língua passeava pelos anseios. Ela a deita gentilmente, os olhos fixos nos dela. Ela geme baixinho, implora que a possua depressa, antes que o mundo se acabe, antes que a vida termine, e pro inferno a luta do feminismo contra a submissão, ele insiste em perdurar cada afago, precisa ensinar quem está no comando, ela sente que vai chorar. As mãos deslizam por seu corpo, os dedos apertam seu seio e procuram os portões da definitiva insanidade. O instinto dela aflora quando o agarra pelos cabelos e finalmente o faz penetrar seu corpo, com um desejo já incontrolável. Impossível distinguir o predador, ambos com sangue escorrendo do peito, dos braços e nuca... As bocas não se separam e os corpos seguem líquidos e densos como mercúrio, mesclando e turvando-se na mais furiosa das tempestades. Ondas elevam o desejo, o navio parece prestes a naufragar quando finalmente o maior dos amores que já existiu irrompe, numa indiscritível cena de loucura em que ambos se arranham e mordem em desespero de medo, de prazer e o que se escuta é a mais pura tradução do lado feroz e impiedoso da natureza. Ah, os violinos finalmente! Ela de alma desabada em prantos e ele repete sem parar “eu estou aqui”.

Essa paixão foi por demais impiedosa. Não teve pena do estrago causado a ambos. Já era impossível permanecer passivo e mais de um metro era saudade. Realmente nada havia de concreto capaz de unir pessoas tão diferentes. Porém cada nuance de personalidade traduzia-se em necessidade de descobrimento.

Mulheres e seus sentidos! Chegou a hora. Preparou-se para a fatalidade com parcimônia, concentrada no silêncio dos grilos dentro da noite. Ele se aproximou, antecipando toda a dor. Já choravam. “Não posso fazê-la sofrer. Acabou.”. A peste e a destruição dizimavam-na enquanto por dentro implorava. E assim ele andou calmamente levando o sol, como se ainda escrevesse o prelúdio desta morte anunciada. Imersa em seu amor, ele partia a cada vez que ela respirava, doía demais, mesmo para enlouquecer. Permaneceu imóvel, seus sonhos definhando junto com as cinzas que sufocavam a grama. Certa de que esse era o grande amor, seu maior desespero eram os dias no futuro, pelos quais se arrastaria inerte, sem poder exercer toda a paixão que haveria de permanecer exatamente onde estava. Para empre.

De manhã, só restaram as pegadas do gado no barro, uma sombra condenada a vagar pela memória e o horizonte insondável de uma solidão montanhosa. E um esboço de mulher... carregando um amor tão imenso que a impedia de morrer.

BREVES DISPERSÕES AMOROSAS

Ah... de tanto amar esse meu amor que é tão tamanho e eu no entanto ponho-me a esperar portanto algo que, com espanto, tire-me o ardor desse olhar profundo já quase diurno dando volta ao mundo e suspirando o vento, ele próprio já é um suspiro mas suspira junto de tanto te esperar hoje e sempre e tanto, voltei pro espanto, onde está que não encontro, tanta vida e sonho e seu eu me casasse, e se eu comprasse um velocípede, ainda te amaria muito mas te seguia, e perseguiria, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que...

Ah... mas nem pensar que acaba, que esta vida já é mesmo quase nada, este é o purgatório, quando acaba é que começa e se eu só te vi agora, quando vier a aurora de uma vida outra, trancafiados no promontório do destino, ai de ti, que não te deixo nunca mais, e foda-se o mundo, não me chamo Raimundo, a vida dá muita volta, estrelas na veneta do lunático amante delirante que apostou com lua fazer da amada estrela sua.

Ah... nem que eu quisesse de mim te livraria, o estrago foi tamanho daqueles sem volta, e a culpa é toda tua que veio com essa boca, feita pra minha boca, nunca vi nada parecido com o encaixe dessas bocas e quanto mais eu digo bo-ca mais a minha fica louca, eu fico repetindo BO-CA que essa som tem mesmo som de boca e ouvir alguém dizendo BO-CA dá vontade de beijar.

Ah... me esqueci o que eu dizia, algo sobre o que eu não faria, mas por você faria tudo e até de mim te livraria, com estante e tudo, e obras completas do Manoel de Barros, ou quase completas, que tem um livro dele de 52 que eu não consigo achar, mas se eu achasse ficava sem o livro de novo, porque eu te daria o livro de 52 e todos os outros também.

Olha, vê bem se me escuta, que a gente quando ama o feio bonito lhe parece, agora imagina a minha situação que você já era lindo e eu nem te amava, então guarda essa bo-ca que eu não consigo falar e beijar ao mesmo tempo, guarda essa BO-CA na minha que eu... ai...

Olha, eu queria te dar um casaco de vison e um anel de brilhantes, na Playboy diz que a gente põe o anel preso no caule de uma rosa, no meio de um buquê, mas essas coisas ficam bem melhores numa mulher, então eu trocaria tudo pela poesia, uma gota de cada oceano, faixas longas de luar, pedrinhas do Taj Mahal, vitrilhos das igrejas da Sicília, lava do Vesúvio e umas receitas da Madame Min e da Maga Patalógika, mas se eu fosse buscar tudo ia levar um tempão, ficava longe de você, e isso eu não agüento, que eu fico com sinusite, comichão, dor de barriga, nem pensar na minha vida sem ter a quem pedir perdão.

Perdoa. Perdoa eu te amar assim tanto até quase estrebuchar, mas é que eu quando vejo essa boca, essa boca pode mesmo me matar, já tinham me avisado aqueles dois irmãos, mas quando eles cantaram isso eu nem te conhecia, não entendi direito, só agora que acredito, porque às vezes morro um pedaço, cada vez o amor sela de um lado orgasmo e do outro uma morte, tem um psiquiatra que conta isso também, eu não sei direito porque cura já não tenho mais, mas é assim que funciona, mata um pedaço que não volta, minutos que foram pra memória e o corpo ainda está arfando, mas já acabou, é menos tempo na vida pra ver o sol brilhar de novo.

Perdoa. Quanto mais eu explico, menos o resto entende, vai ficando enrolado, e eu depois ainda vou ter que imprimir essa confusão porque você não tem Internet e eu mesma já estou achando tudo diferente, mas por favor fica perto, tô com medo, hoje eu tive um pesadelo, queria um sorvete cheio de marshmallow, falar dessas coisas de amar dá gula e todas as minhas bocas querem ser beijadas e, na falta da tua boca, principalmente a do meu estômago.

Guarda. Guarda eu, você, as garrafas de vinho e os nossos livros pra sempre com beijos macios, beijos de lichia, essa fruta-boca, e nunca demora, que eu tenho medo do escuro, sinto tanto frio... definho sem SOL.

MARILU

Vou contar uma história
de alguém que perdeu um pedaço
e foi procurar em você
o que enchesse esse espaço.

No início era por você
que o dia era de novo dia.
Era por você que havia
uma força de vida

Até que, ao invés de amanhecer,
você passou a anunciar só
a hora de dormir
e a hora de crescer.
E o desabo foi tanto que o poema perdeu a métrica e
a rima.

Hoje eu sei que ninguém
é alicerce do outro.

Vou chorar teu sangue derramado,
tuas lágrimas perdidas
teu filho parido,
teu amor custoso de preterida,
e tuas metas pretendidas
e teu suor esgotado.

Vou torcer pra te trocarem as lâmpadas,
pra te ninarem no sono,
sem nunca parar de me encantar
com os rasgos de tuas saudades.

Tuas saudades de quando podia
não ter casado,
ter gritado,
não ter escolhido,
ter gozado,
não ter concedido,
ter proibido,
ter sido
ou não ter sido
diferente.

Eu sei que nada que eu diga
vai tirar teu cansaço,
ou descarregar teus ombros,
ou te levantar do chão,
ou enxugar o sereno do teu olho de lua,
que vai pingar sempre
uma pra São Jorge e outra pro dragão.

Mas acontece que meu carinho só sabe
ser assim, super novas que vêm
da eclosão de buracos negros,
perdidos entre dois inconscientes.

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

LÁGRIMAS DE DIAMANTES

Letra e Música: Moska

Não se preocupe mais
Com minha imperfeição
Não se pergunte mais
Porque me disse não

Se eu não procuro agora
O que encontramos antes
É só porque a noite chora
Lágrimas de diamantes

Lágrimas de diamantes
À noite, lágrimas de diamantes
De dia lágrimas, à noite amantes
Lágrimas de diamantes


...trilha da tarde, repentindo, repetindo, repetindo, repetindo...

...essa tem sido uma semana das mais assombradas...
E eu, ao invés de continuar correndo do carrasco, pendurei a guilhotina no pescoço. Posted by Hello

VOCÊ VAI?

— Então você vai?
— Vou.
— Jura?
— E precisa?
— Claro!
— Então eu juro.
— Vou ficar esperando.
— Já estou ansioso.
— Eu também. Mas olha...
— Diz...
— ... não conta pra ninguém. Por favor. Se meu marido descobre, nem sei.
— Segredo nosso.
— Anotou o endereço?
— Aqui, no bolso.
— Então até domingo.
Solano havia conhecido a Teresa num baile de carnaval. Lembra que ela entrou no salão vestida de “Cumunjarim-gombê” e que seu coração chegou a estancar de susto. Era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida. Solano perdeu a fala. Quase um metro e oitenta de perdição, pernas longas, uma elegância indizível, pele brilhante, olhos grandes e profundos, boca carnuda. Os cabelos longos de trancinhas lhe caíam pelas costas. Observou a Teresa atravessar o salão, acompanhada de cinco amigas que mais pareciam amas de uma rainha. Não tirou os olhos dela durante todo o baile, esperava uma oportunidade de conseguir se aproximar. Uma aparição. Tinha que conseguir algum contato, esperaria o tempo que fosse necessário.
Esperou por oito anos. Durante o baile, não conseguiu chegar nem perto, tremia dos pés à cabeça. Nem pensava mais nessas coisas (mentira, porque toda vez que pisava na bola com mulher ele lembrava da covardia do baile) e ia tranqüilo pela rua Conde de Bonfim quando deu de cara com a Teresa.
Com medo de ter que arrastar outro retumbante fracasso pelo resto da vida, tomou coragem e foi em frente. Ela foi simpática, o rosto dele não era estranho, irmão da Zizinha, claro, como vai, tudo bem e você, lembra do baile, fantasia bonita a sua... pois é, casei, dois meninos, eu continuo solteiro... advogado, bióloga... chopinho, não posso demorar, só unzinho, tá, mas eu sou fraca, qualquer coisa eu te levo, olha lá... feliz de todo, sempre quer mais, eu sei, morar longe tem muito a ver com isso, quando você volta pra lá, domingo à noite, e teu marido, tá me esperando lá, não vai sentir saudades do Brasil, não pretendo voltar nunca mais... tomar mais um, mas já foram vários...eu arrastava um bonde por você, naquela época já tinha metrô, eu faria qualquer coisa que você pedisse, mentira que você nem chegou perto de mim e tremia todo, você percebeu, eu não tirava os olhos de você, como que eu não vi, idiota, também não precisa ofender... sua irmã é que sabe, mas desde a quinta série, pra você ver, eu não acredito, meu coração disparou só de lembrar, é mesmo, põe a mão pra você ver... pára, só mais um, aqui não, deixa disso, e se algum conhecido aparece, a gente disfarça, vamos marcar em outro lugar, mas quando, domingo, que horas, depois do almoço, antes d’eu ir pro aeroporto, onde, na casa de uma amiga que está viajando, e a chave, eu tenho cópia pra emergência, deixa eu anotar o endereço, então você vai?
Solano pôs a Teresa num táxi com a sensação de que não ia sobreviver a uma espera de quarenta e oito horas.
Domingo, Solano acorda com o telefone.
— Solano? Tá dormindo ainda? Mas já é meio-dia!
— ...kjhiudsabmmmmmm...
— Acorda, Solano. É o Jão. A gente combinou, lembra? É hoje que o Edmundo se apresenta! A gente ainda tem que ir pegar as faixas e os instrumentos na casa do Chupeta. Ele nunca lembra de molhar as latas antes, deve estar tudo quente ainda.
— Jão! Já é meio-dia?
— E quinze.
— Ai, Jesus.
— Jesus não. Dez minutos. Dez minutos são só o que te resta, eu tou chegando. Vaaascoo!
Solano andava de um lado pro outro, sem saber o que fazer. Ia ligar pra Teresa e desmarcar. Chegava um pouco mais tarde, pronto. No papel do endereço não tinha telefone. E agora? Ele esqueceu de pegar o telefone! Mané. O próprio em pessoa. E o Jão tava chegando! Era isso, ele ia com o Jão, marcava um tempo e depois corria pro tal apartamento. Saía de fininho, os caras nem iam perceber.
Quando o jogo terminou, Solano estava completamente rouco. O Animal, na sua estréia tinha marcado todos os cinco gols do Vasco e entrava para a seleta “galeria dos quíntuplos”, da qual já fazia parte o Dinamite. Cinco gols numa partida! Abraçado aos amigos, feliz da vida, Solano cantava o hino. Foi o Jão que cortou o barato.
— É isso aí, tudo muito bem, mas tá na hora de comemorar. Vamos todos pro Estephanio’s, a essa hora deve ter um belo dum pessoal lá.
— Hora? Que hora que é essa, Jão?
— Seis e meia.
Solano sentiu a cabeça rodar. Teresa, a essa altura, já devia estar no aeroporto. Saiu correndo pela rua engarrafada, catou um táxi e prometeu gorjeta se chegassem em vinte minutos no Tom Jobim. No setor de embarque, atropelou duas crianças, um casal de idosos, vários carrinhos de bagagem até que viu a Teresa na fila do check-in. Parecia uma artista de cinema, com uma echarpe de seda cobrindo os cabelos e de óculos escuros.
— Posso ver sua passagem, senhor? Não vai viajar? Nesse caso, o senhor deve permanecer atrás deste cordão.
— Teresa! Teresa, eu posso explicar. Me dá uma chance. Aconteceu uma coisa incrível hoje!
— Vá embora. Eu não quero vê-lo nunca mais!
— O Edmundo, Teresa!
— Quem?
— Foram cinco!
— Tiros?
Ela ameaçou se aproximar.
— Gols!
— Hein?
— O Edmundo fez cinco gols!
Solano viu o corpo dela enrijecer, o peito subia e descia e o lábio inferior deu uma tremidinha. Teresa deu meia volta e desapareceu no corredor de embarque.
Ele sabia que tinha arriscado demais. Era tudo ou nada. Talvez tivesse perdido a mulher da sua vida. Mas mané autêntico sempre deixa passar essas oportunidades. A Sheila Carvalho também não estava ao alcance e ele não deixara de viver por isso. Pelo menos ele não ia precisar passar o resto da vida ouvindo os amigos esfregarem na cara a façanha histórica do Animal. E fazendo questão de lembrá-lo de que a efemeridade de um par de pernas não vale a eternidade do Vasco da Gama.

Insônia

A porta estava fechada. Uma porta fechada pode ter muitos significados e ele permaneceu de pé diante da porta, hipnotizado pelos laivos da madeira. Em suspenso por uma porta.
A pouca luz do corredor aumentava a ilusão de ótica e ele podia ver, com um pouco de esforço, a imagem que quisesse esfumaçada nos reflexos do verniz. Aos poucos, no entanto, seus olhos foram baixando até seus próprios pés descalços e foram se voltando pra dentro de si e do tempo. Ouviu a voz de Billie Holiday cantando “You’ve changed”.

You’ve changed…

Assiste vários slides passarem por trás da testa, a memória feito colcha de retalhos. Viu a paisagem da Quinta da Boa Vista, outonal e nublada. Lá iam pelo menos uns cinco anos. Ou mais. Ele andava pelas alamedas como se fosse o próprio imperador. Sentia uma alegria morna de estar ali, um lugar que já havia povoado pesadelos de infância. O pai tinha mania da Quinta e mania só aos domingos, o que não ajudava. Dessa vez ele estava feliz. Orgulhoso. Só de olhar pra ela, tão bonita, o vestido branco...

That sparkle in your eyes is gone

Muda o slide de seu pensamento. Chega ao momento exato em que se conheceram. Ele voltando pra casa bêbado, oito horas da manhã, fedendo a conhaque e perfume vagabundo. Ela de patins na contramão. Quando conseguiram levantar do meio-fio, ele cambaleante e ela estreante, desculpou-se pelo mau jeito e ela apenas lhe sorriu.

Your smile is just a careless yawn

Um sorriso doce que ele havia de ver muitas outras vezes. Inventaram jogos só deles. Como voltar pra casa brincando de adivinhar o filme. Ela dava as pistas. Ele era péssimo jogador. Dizia coisas do tipo “ah, sei sim, é com aquele ator que sempre faz papel de vilão e trabalhou com o tal diretor moderninho daquele filme que foi o maior sucesso”. Ela fazia beicinho e respondia que ele não sabia brincar, que não prestava atenção ao que ela dizia.

You're breaking my heart

Outro slide. Nus os dois, na beira da estrada do Recreio dos Bandeirantes. Vidro embaçado. Ele querendo ainda preservá-la, o macho protetor. Ela, zombeteira, querendo descer do carro e ir pedir benção à Iemanjá. Nunca soube resistir, não a tamanha entrega, ela era sua, e cada beijo lhe enchia de desejo e temor.

You've changed

Pra ela, o amor era mesmo sempre e tanto.

You've changed

Ele tinha pena do ciúme que a fazia sofrer. Slide: festa de ano-novo. Ele encontra com uma ex e não consegue cortar a conversa. Ela estranha a demora e vai atrás. Vê a outra, já a essa altura adversária em potencial, e se enfurece. Aproxima-se com um sorriso nos lábios e diz: “nossa, você estava demorando. Senti sua falta”. Segura-o pela gola da camisa, põe a mão entre suas pernas e lambe-lhe o pescoço. A ex inventa uma desculpa qualquer e se afasta. O sorriso desaparece do rosto dela. “Puta…”, resmunga baixinho.

Your kiss is now so blasé

Tenta encontrar outro slide. O da última vez que a viu sorrir.

You're bored with me in every way

Não consegue. Vasculha a memória. Quando foi a última vez que ele a teve em seus braços? Ou que ficou velando seu sono?

I can't understand

Nem sequer consegue recuperar o motivo da última discussão. Lembra apenas de ter se espantado com a quantidade de “porras” e “caralhos” que ela atirava em todas as direções.

You've changed

Lembra de não conseguir esquecer. Lembra de não perdoá-la pelas amantes que teve depois, nem as noites de insônia como essa de agora, costurando cacos de memória em pé no escuro. Lembra que esqueceu de tentar amá-la.

You've forgotten the words I love you

Minados de mágoa. “Tem um tradutor na casa? Porque eu realmente não consigo entender o que diabos você diz”.

And each memory that we've shared
You ignore every star above you

Porcaria de arquivo, só slides ruins. Melhor voltar a tomar Biotônico. Numa das brigas, ela o acusou de ter-lhe roubado a juventude e a beleza. Que ele fora egoísta, canalha, tinha usado e abusado do amor que ela teve um dia. Que ele estava aquém do que ela merecia e na cama... Ah, ela fingiu sim. E muito. Ele a esbofeteou.

I can't realize you ever cared

Riu de si mesmo. Tinha perdido o fio, da meada, do pensamento, do casamento e do propósito de estar de pé ali no corredor diante da porta. Uma porta fechada pode ter muitos significados. Olhou de novo. Uma porta. Ele podia ver a imagem que quisesse esfumaçada nos reflexos do verniz. Podia vê-la na cama, do outro lado. Uma porta bem fechada. E ele resolveu voltar pro sofá.

You've changed
You're not the angel I once knew
No need to tell me that we're through
You've changed.

O escuro

"O escuro é onde a gente vê o que não está lá. Vem quando a mamãe diz: "Boa noite, dorme direitinho, meu filhinho" e apaga a luz. Aí a gente só sente os barulhos e fica pensando noutras coisas completamente diferentes daquelas que tem no quarto quando o quarto está claro. Aí dá muito medo e a gente chora até que a mãe da gente volta e acende a luz e o escuro sai pro corredor."
Millôr Fernandes

Acordei sem querer
Era um calor de lascar.
Mesmo o sol do meio-dia,
Velho, feio e mormorrento
Não dava tino de levantar.
Gritei o menino na rua
Pra hora de engalanar
O tempo, a vida e a fome
Num prato de farinha crua:
Mal e mal se come, já some.

Arrasto os pés e a vassoura
Tá mesmo um calor infernal
Pinduro a saia e a trouxa
Roupa pra bater no quintal.

Nem bem a saudade começa,
O choro no tanque me alcança
Eu sei que esse homem não volta
Mas podia arredar da lembrança.

Tão claro esse raio de dia,
tão escuro eu vejo agora
E o resto todinho de depois.
É como não tivesse nascer:
Só me cresce na vista o sol se pôr
Ficar sempre escuro, e o maldito, maldito calor.

O que eu quero enxergar no momento
É quando que o escuro de dentro
vai fugir pro corredor...

EFEITO COLATERAL

...tá um frio danado aqui fora, deu hoje no rádio que ia fazer menos quinze a essa hora, abre essa porta, por favor, chovendo muito, eu sei que a cama tá quente, abre a porta, eu não penso só que vai melhorar, eu sei que vai melhorar, sou um otimista, a esperança é a última, senão eu nem ia mais ver jogo do Vasco, nem votava no Dinamite, viu como eu sou um homem de muita fé, abre a porta, vai, diz pra mim, você acha que eu gosto de você?, você sabe que eu gosto não sabe?, eu sei que perdi a noção da hora, joguei tudo fora, mas meus desvarios até eles são teus, minha Flor, a minha vida tá despetalada sem teu amor, meu coração é uma bagunça, mas ele também é teu, e a desordem dos meus atos, dos pensamentos, a minha conta no banco, o carro, é tudo teu, tudo que você pedir eu faço, mas deixa eu entrar, olha os vizinhos, abre essa porta, olha, eu deixo você brincar de aviãozinho, deixo você me bater, falar palavrão, deixo você me chamar do que quiser, até de Ozéia, xinga que eu mereço, ou então bato eu, te dou surra de cinto, não, não, não vai embora, volta aqui, eu tou de porre, sabe disso, tava brincando, eu não bato nunca mais, eu já tinha prometido, eu sei, nunca mais, eu faço carinho, te cubro de beijos, não tem mancha de batom nenhuma, porra, o perfume é o meu mesmo, esse fedor, não tinha mulher lá não, que coisa, já disse que era, amor, era boate, mas as moças tavam de folga hoje, lá é boate de executivo, elas trabalham de segunda a sexta-feira, folgam no sábado e no domingo, queísso, eu não acho você burra coisa nenhuma, florzinha, você é a geléia de figo do meu pão com requeijão, faço até poema pra você, meu amor, você é a oposição da minha chapa azul, as cordas do meu quarteto, a rima do meu soneto, o camarón da minha isla, eu tenho uma reunião importantíssima amanhã, e amanhã é daqui a pouco, eu preciso tomar banho e ir dormir, ai Yoyô, tenha pena de mim, eu já te disse que meus amigos tão bem casados como eu, não me levam pro mau caminho merda nenhuma, nós só fomos assistir ao jogo, a porra do time perdeu outra vez, eu não sei como o Portela ainda tem cara-de-pau de pôr o nariz na rua, aí nós fomos assistir o Milton Neves no bar e o Eurico falou tanta merda, mentiu, ele continua se confundindo com a instituição, usa o Vasco como escudo, ninguém tem nada contra o clube, tem é contra ele mesmo, e esmerdalhando meu Vasco, meu, como se fosse a privada da casa dele, todo mundo esperando o Roberto aparecer pra bater muito e retrucar as porras todas e o Dinamite nem bum!, só piff, que merda, ainda foi falar de décimo terceiro de funcionalismo e terminou de cagar a porra toda, tanta expectativa pra nada, fomos encher a cara de desespero, tanta decepção junta, que horror isso, e terminamos na Termas, não não não não não, é boate, foi um lapso, boate, b-o-a-t-e, abre essa porta que eu vou pegar uma pneumonia, tou com dor até nos ossos, não é possível que você não esteja sentindo a minha falta também, impossível que só eu esteja cheio de saudade, praticamente nem te vi esse fim-de-semana, vai me dizer que também chegou agora, é isso, não é, como eu sou idiota, você só tá querendo ganhar tempo, você também tava na orgia, galinha, tem outro homem aí dentro, abre essa porta agora, eu já entendi, você tava era fudendo até agora, mal me viu sair e trouxe outro puto pra dentro de casa, sua vagabunda abre essa porta, quem é o safado, eu vou contar até três e botar essa merda abaixo, foda-se a polícia chama a puta da tua mãe também, deixa eu colocar as mãos no teu pescoço, eu vou contar até três, um, três!, vem aqui agora, merda de tapete, ai, bati o queixo no degrau, putaquepariu, acho que eu quebrei a mandíbula, volta aqui, não adianta trancar o quarto que eu derrubo essa também, tou cansado das tuas merdas, vem aqui, eu tou mandando, chama os vizinhos, chama a rádio patrulha, a defesa civil, chama quem você quiser, você não tem saída, eu já te saquei piranha, vou chutar essa porta até ela cair também, não adianta procurar a 45, pode botar o armário todo pra fora porque ela tá comigo, abre, eu sei que tem um babaca aí dentro, manda ele pular então, ou eu ou os dez metros daqui lá embaixo na pirambeira, você não queria casa no morro com vista, vai é ter a vista do rabo dele despencando lá embaixo, manda ele pular, é um, e três!, cadê ele o safado, hein, que é que você tá fazendo aí no parapeito, não, péra aí, desce, tá bem, tá bem, docinho, eu já vi que não tem ninguém, puta merda, desce por favor, eu não vou encostar um dedo em você, eu prometo, Santa Rita há de me ajudar, não chora, segura, segura, não chora assim, tudo bem, eu fico aqui, não chego mais perto não, fico aqui, aqui perto da porta, mas pelamordedeus, meu amor, eu não vou te bater, eu juro, desce, você vai cair, porra será que você não tá vendo, cacete, desce, cuidado, segura, segura, Mariiiiiaaaaaaaaaaaaaaa!!!

quarta-feira, 13 de outubro de 2004

DIA DE JOGO

Heitor entrou no Estephanio’s arrastando os pés e com uma estranha expressão no rosto, um misto de cansaço e tristeza. Sentou-se no lugar de sempre, na varanda lateral, e atirou sobre a mesa o conteúdo dos bolsos da calça: carteira, chaves e um celular desligado. Permaneceu mudo quando o garçom perguntou-lhe se queria o de sempre. Alguns conhecidos vieram cumprimentá-lo e também tentaram arrancar alguma coisa da figura que permanecia parada com a cabeça nas mãos, mas sem sucesso. Heitor não se movia, não falava, não respondia.

Começou o falatório. Uma rodinha se formou dentro do bar, ao lado do balcão. Observavam o Heitor pela janela de vidro fechada.

— Que é que houve?

— Alguém ouviu falar alguma coisa?

— Acho que veio direto do serviço, tá de paletó ainda.

— Mas ele não estava em São Paulo?

— Diz que chegava hoje.

— No escritório não passou. Liguei pra lá de tarde e ele não tava. E o celular passou o dia caindo na caixa postal.

— Direto?

— Não. Chamava, chamava, e ele não atendia.

— Devia estar filtrando.

— Porra, mas hoje é dia de jogo!

— Por isso ele tá aqui. Pelo menos não sumiu de todo.

— Jogo do Vasco ele não perde.

— Também não deixava passar mulher até a Vânia aparecer.

— Deixa de ser escroto, rapaz. Não tá vendo o estado do sujeito?

— Calma lá pessoal, não vamos brincar com coisa séria.

— Não tem ninguém de brincadeira aqui. O cara é nosso amigo e tá visivelmente na pior. E eu aposto um contra cem que foi a puta da Vânia.

— Cala a boca, mané. Já pensou se o cara escuta?

— E uquequiagente faz?

— Nada. Espera.

— Ah, não. Eu num güento ver um homem desse tamanho assim.

— Fazer o quê?

— Pensar num plano. Ele é camarada, sempre foi. E se um de nós chegar lá desfiando tragédia? Capaz dele largar um pouco a própria pra dar o ombro a um amigo.

— Boa. Quem vai?

— Eu não posso. Tou devendo a ele dinheiro do casado semana passada.

— Também não posso. Deixei uns quinze recados no escritório e ele nada. Comigo não quer mesmo conversa.

— Vou eu então.

— Você?

— É.

— Mas vocês nunca foram muito chegados...

— Melhor. Pego ele de surpresa. De mais a mais, com as Bohêmias na mesa, tanto faz se sou eu ou o Genival Lacerda.

— Vai fundo.

— Mas pega leve. Não fala da Vânia...

— Como não fala da Vânia? Tá na cara que foi essa filhadaputa que aprontou com o sujeito.

— Inocente até surgirem provas em contrário.

— Larga a mão da conversinha, doutor. Todo mundo aqui no bar conhece muito bem a tipa.

— E você ainda quis conhecer mais a fundo, né?

— Olha aqui, ô seu...

— Êpa, êpa! Devagar! Não vamos arranjar mais uma arenga.

— Verdade, sim senhor! E se não gostou, pode cair dentro!

— Larga a mão de ser otário!

— Evaristo, vai lá de uma vez, anda, e vê se acaba com o nosso suspense.

Evaristo sentou na cadeira em frente ao Heitor, mas virou-se pra rua, de modo a não afrontar muito.

— É, meu velho. O bicho anda pegando.

— ...

— A maré não anda mesmo pra peixe.

— ...

— Tá bebendo o quê?

— ...

— Escuta, o jogo começa daqui a pouco. Daqui a gente enxerga bem a TV, mas você não prefere tomar uns tragos comigo? Larga essa porcaria aí que eu vou pedir o que preste. Erasmo! Traz logo duas de saída e não deixa o copo do Heitor vazio!

— ...gado.

— Sabe, eu ando triste que só. A gente às vezes custa a entender que raio de esforço tem que fazer nessa vida pra ter um bocadinho justo de alegria. Cê não acha Heitor?

O Heitor não achava nada. Evaristo tentou de todo jeito, mas nada surtia efeito. O infeliz continuava com uma cara de enterro, enfurnado num sofrimento sem fim, escondendo as mãos no rosto pra não mostrar as lágrimas. Mas o Evaristo ficou preocupado mesmo quando o jogo estava prestes a começar. O Heitor deu um gemido fundo e ameaçou levantar.

— Fica aí, rapaz... Agora é que vai dar a partida!

— Deixa eu ir...

— Olha, o jogo de hoje é contra o lanterna, você sabe. Vai ser de goleada. Fica aí, rapaz, que nós vamos lavar a alma hoje!

— ...

Heitor passou o primeiro tempo assistindo o jogo por trás dos dedos entrelaçados com força, feito criança que não resiste a espiar o filme de suspense. No intervalo, o placar era dois a zero pro Vasco e o Heitor, a essa altura completamente de porre e animado pelo resultado, começa a falar.

— Pois eu te digo... O que salva é o futebol. O que salva é a cerveja. Os amigos! Os amigos também, mas principalmente o futebol. Tá vendo esse monte de barbado aqui em volta? Bando de frouxo, isso sim.

— Fala baixo, Heitor... E o Morais hein? Podiam escalar o garoto na lateral, te garanto que era mais negócio pra nós...

— Tá jogando contra o patrimônio, rapaz? Ele precisa ficar onde mais se desenvolva, ali na armação mesmo. Colocar um garoto com esse talento, numa função burocrática, só na base do corre-corre-corre, cruza-cruza-cruza, volta-volta-volta e marca-marca-marca é um tiro no pé!

— É pode ser. Mas o garoto é versátil, livrava a gente de uma mala das grandes... há controvérsias...

Segundo tempo rolando.

— Só o futebol, Evaristo. Frouxos. Boiolas. Vi-a-dões! Só são machos aqui, coçando o saco nos cornos uns dos outros!

— Pára com isso, Heitor.

— Mas eu não. Eu não! Eu já aturei muito! Já comi muita merda nessa vida! Mas eu sobrevivi! Eu vou enterrar todos esses imbecis que tentaram me fuder! Todos! Eu sobrevivi! Eu sou vascaíno, safo, comigo ninguém pode! Não vai ser um diazinho mais ou menos que vai me derrubar! O Vascão taí pra provar isso, Evaristo! Dois a zero pro Vascão! Vaaascooo!

Não passou nem um minuto e... gol do adversário.

— Porra, que golzinho de merda! Como é que vocês deixam esse sujeito passar assim, enfileirando?

— Calma, Heitor. Tá dois a um ainda. Daqui a pouco o Vascão faz mais outro. Vamos apostar? Três a um pra nós. Que tal?

— É isso aí. Vascão! Eu sou o rei da colina, rapaz, ninguém vai me derrubar! Futebol, mano, futebol é o que salva. A redenção das bestas-feras. A salva-guarda dos desvalidos! Vou mijar, tô nervoso.

Teve um piripaque no banheiro. Jurou que viu a Vânia sentada na varanda do bar, no colo de um sujeito. Começou a suar frio. A mão ficou gelada e tremendo e não acertava mirar o pau de jeito nenhum. Era a Vânia? Mijou na tábua que respingou no sapato, ficou mais nervoso, alguém gritou gol, quis fechar o zíper de uma vez, mas ainda saiu um último jato que molhou bem a frente da calça. Quem gritou, cacete? Foi gol de quem? Pegou uma toalha de papel pra limpar, não era possível que fosse a Vânia. Melhor espiar devagarzinho, mas o banheiro deu um rodopio e duas meias-voltas, ele bateu a cabeça no batente da porta e um filete de sangue escorreu pela testa. Saiu cambaleando.

— Goooolll! Mais um!

O cara que gritou dessa vez era um barbudo de dois metros de altura que estava de camisa verde. Verde? Não é possível. Então não foi gol do Vascão? Cadê a piranha que estava na varanda? De quem foi a porra do gol? E o outro, era replay? A cabeça doía e o sangue escorria pra dentro do olho esquerdo, pela cara abaixo e caía na camisa branca. Atravessou a varanda e nada da Vânia. De quem foram as porras dos dois gols? Deu a volta no bar até a própria mesa. O Evaristo levantou, lívido, já sendo agarrado pelo colarinho.

— Era ela, Evaristo?

— Calma, Heitor.

— Era ela, Evaristo?

— Era.

— Cadê?

Gol. Gritaria. O parrudo de verde rindo, com os braços pro alto.

— Cadê ela, Evaristo? Cadê ela, porra?

O juiz apitou o fim do jogo. O Vasco perdeu por quatro a dois. Outros cinco de camisa verde davam pulos e berravam como hunos.

— Fala Evaristo!

— Ali.

Apontou o grandalhão que comemorava. De repente, de trás do sujeito, aparece a Vânia. De Verde. Enlaça o pescoço do troglodita e comemora com um beijo na boca.

Heitor foi visto indo embora uma hora depois, algemado. Não sem antes deixar um cheque pra pagar os prejuízos do bar. E com as duas mãos quebradas. Dizem até hoje que o mal da Vânia foi a camisa. O Heitor agüentaria qualquer coisa. Mas de verde foi demais.

Utensílios de cozinha

A faca estava não estava afiada o bastante.
Procurou o amolador na gaveta e não encontrou. Deve estar na cozinha. Espere aí. Vou subir. Maldita escada, todo porão deve ser assim, desarrumado e sujo e escuro, detestava desordem, sempre tropeço nesses degraus mal iluminados. Na volta, traria uma lanterna.
Tem alguém na cozinha. Mas não era pra ter ninguém... Deve ir verificar, ou voltar correndo e se esconder. Meu joelho está tremendo, o coração disparado, o som vem de trás da bancada...saia já daqui, gato infeliz! Que susto.
O que foi que eu vim buscar mesmo? Ah, o amolador... Tem que estar no lugar. Eu odeio desordem. Abriu a terceira gaveta da esquerda, afastou o rolo de papel alumínio e... não achou. Não estava lá. O amolador também estava fora do lugar. Sentiu a raiva aumentar.
Continuou procurando e só desistiu depois de vinte minutos. Arrumar, arrumar tudinho nas férias. Férias servem pra isso, arrumar armários, trocar as carrapetas velhas, mudar os móveis de lugar, recortar as receitas que fazem a gente empilhar jornal (embora todo mundo sempre acabe perdendo recortes de jornal, eles parecem imprescindíveis).
O jeito seria trocar de faca. Que coisa! Como é que uma casa desse tamanho nunca tem uma faca que preste? Seu sonho era ter uma cozinha daquelas superequipadas, uma mistura de Frugal Gourmet com Ana Maria Braga. Faltava uma peneira de farinha, não acho outra faca, faltava também um batedor de ovos, vovó tinha um ótimo, essa deve servir, parece afiada, só o grill de fazer waffles já tinha sido comprado na semana anterior. As crianças adoraram.
Tão instintivo quanto imbecil, pra testar o fio do facão passou o polegar. Ui! Cortou. Tá ótimo, bastante afiada. Enfiou o dedo na boca. O gosto do sangue era doce. Lembrou da brincadeira de criança, com os primos, dar chupão no próprio braço e lamber os pontinhos de sangue. So sweet...
Ouviu um som estranho vindo lá de baixo. Apurou os ouvidos, sob tensão os sentidos ficam mais aguçados, maldita hora que fui me prometer tomar uma decisão dessas, eu desço lá e acabo com essa bagunça, dá um cansaço ter que estar sempre alerta, tomando conta de tudo, liderando, resolvendo, consertando... só queria alguém para dividir.
Mas a maioria das pessoas não sabe dividir. Odeio essa escada, amanhã mesmo chamo um marceneiro pra dar um jeito aqui, pôr um corrimão, sei lá. Não sabem repartir nem seu tempo, nem seu dinheiro, nem muito menos seu amor. Um pouquinho de amor pra cada lado teria resolvido tudo. Ah, não... você sempre tem que complicar tudo. Espera aí que eu vou acender outra luz que está escuro aqui embaixo. Como foi que você soltou os pés? Eu sabia que não podia confiar em você. Tá vendo? E você ainda queria me convencer de que ficaria tudo bem. Agora vamos resolver tudo. Essa faca está melhor do que a outra, posso terminar o que comecei. Não chora. Apesar de ser só ex, eu merecia um pouco mais de consideração. Cala a boca. Vai ficar tudo bem, você não queria que eu acreditasse? Eu acredito. Pode deixar. É melhor colocar a venda de volta. Depois que eu tirar a parte que me cabe, deixo o resto de você na porta do seu atual... marido, como preferir. Com laço vermelho e tudo. A justiça de Salomão é que vai nos salvar desse impasse. Agora fecha os olhos. Vou cantar pra você...
Um elefante se pendurou
numa teia de aranha.
Quando ele viu
que a teia resistiu
foi chamar outro elefante.
Dois elefantes se penduraram
numa teia de aranha...

Confesso...

Confesso que foram poucos os dias em que não me lembrei.
Confesso que tenho arrependimentos, algumas marcas e outras tantas recordações — que não são nem menos nem mais que as outras tantas recordações da estante da minha memória, “mas que são minhas e de você também”...
Ah, Dindi... Se soubesse o bem que eu te quero, me leva contigo pra Borda do Mato, pra Ibitipoca, Araçatuba, Caraguatatuba, jujuba e pudim de leite, ou pra Xerém. Me leva na Toyota Bandeirante, com o Igor de carona, cesta de piquenique, brincar de esconde-esconde eu não quero mais, tá com você, mamãe posso ir? Quantos passos?
Não comi alcachofra, nem peguei o avião. Eu, por mim, deitava no colo pra ouvir parede, contar fio de cobertor e cutucar unha do pé depois de ser espontânea. Eu, por mim, corria atrás de perdizes até gastar a lapa dos sapatos e rezava pra Santa Cecília me dar uma bela vista do futuro

Idéia fixa e pensamentos delirantes

Da série: “Lá vem você outra vez…”
II

Hoje eu descobri que a eternidade é o encontro do sol com o mar.
(Sempre ele, o sol…)
Descobri que saudade é sal na boca açucarada
e que leio em tua respiração o rumo dos dias que me restam.
(Eu estou beijando você…)
Ouço a insistência melancólica do mar na tua ausência.
Vibro elástica tua fome e teu cansaço.

Racho e me despedaço de não te ter.
Me refaço e caminho por força do mesmo temor.
Choro tua boca de arder o peito…
choro teu colo — que argenta meu sono — de congelar…
(Eu estou beijando você…)
te espero, o corpo aguando…
arrastando o peso sobresselente de vidas a fio esperando
o infinito.
O mesmo abismo que rouba minha paz.
(Eu estou beijando você…)
Eu outonaria…

Hoje eu descobri que o maior presente é o afastamento,
e depois chegar bem pertinho,
sentir o cheiro do gozo antes do beijo..
Que a maior dádiva é o próximo passo.
Sei que minha força é meu amor.
E ele cresce.
Inacreditavelmente.
(Eu estou beijando você…)
Cresce.
Sôfrego, sem lastro…
Agrava-se.
Se expande a cada dia, sem fronteira, nu…
dança no centro dos negros olhos verdes…
Azuis de tão perenes
Alheios de tão ocultos.
Cresce avassalador, condenado a multiplicar-se
por toda a intrínseca hora eterna de pertencer-te.

(Eu estou beijando você…)

S.T.
B.

Conhecendo Frank

“Fellow me; I seek the everlasting ices of the north, where you will feel the misery of cold and frost to which I am impassive.”

Hoje o Bruno ligou. Hoje eu topei com Black Rio. Hoje me deu uma saudade danada da Ale e do Vasco. Vi um programa com o Tira a Poeira. Ouvi a mesma música brega umas 35 vezes. Hoje a Milena me fez assistir um filme água-com-açúcar sobre coisas das quais não se pode fugir mesmo depois de vinte anos e sobre ser fiel a si mesmo. Não foi isso que me convenceram a fazer. Disseram pra mim que eu tinha que ser forte e trancar tudo do lado de dentro. Me disseram que se eu demonstrasse minha fraqueza, perderiam todo o respeito que tinha sobrado. Aí eu acatei e engoli. Aí eu não soube mais como voltar atrás, virou uma questão de sobrevivência. Aí eu achei que ia enlouquecer. Aí eu criei uma personagem, que ia lançar um livro que ficou pelo meio, montar uma peça que parou no roteiro e que amava outra pessoa. Um monstro de retalhos de vidas paralelas.
Eu nunca me senti tão fora de prumo. Meu astrolábio está avariado.
Mandar aquele último imêiul foi bom porque desmistificou esse silêncio, essa clausura horrorosa na qual eu me enfiei. Mas também aumentou o desajuste com esse Frankenstein que eu criei pra morar dentro. Agora ele já não me obedece como antes. Eu digo pra ele: pára. Ele continua. Eu digo: jogue as fotos fora. Ele as pendura na parede. Esse Frankenstein, além de estar desobediente como nunca, não agüenta mais tanta hipocrisia, nem essa ausência surda.
Ele me disse que, apesar de todas as minhas súplicas, não pretende mais me obedecer. A matéria inanimada, criada por capricho, está se tornando independente, assumindo personalidade própria. Frank disse também que vai carregar essa maldição da matéria morta, essa espécie de rancor contra mim, sua criadora, pra sempre. A vida dele começou quando o trem da minha vida saiu definitivamente do trilho. O Destino, que nos faz crescer e aprimorar a existência, que dá sentido à seqüência das noites depois dos dias, que não deixa o sol nascer à meia-noite, nem permite que a lua caia no mar, essa lei natural que coordena o universo morreu no instante em que Frank surgiu. São excludentes. Ele não entende por que, se a lei primordial ruiu, a vida não cessa e se transforma em purpurina. E não me perdoa. Exatamente por ser fruto de uma mentira, ele sabe: no dia em que a mentira terminar, ele vai terminar também. Então ele luta. Luta contra mim, de mágoa, e luta pra continuar sendo, pra não desaparecer. E vive me arrastando de volta pra esse mundo fictício onde o tempo não sangra nem estanca, onde fugir parece com prosseguir. É irresistível, basta fechar os olhos e ele vai parar nesse mundo paralelo, onde todo dia é dois de dezembro.
Ele tem tido delírios de ir pra bem longe, mudar de cidade, de estado, de país. Diz que morre de medo de tiroteio de madrugada, tem pesadelos terríveis com ladrões que invadem a casa quando ele estiver dormindo e por isso passa as noites em claro. Talvez não queira acordar, ou talvez ele não queira sonhar de novo sonhos tão bons que doem torturantemente quando terminam.
Eu gostaria de poder dizer pro Frank que vai passar. A vida dá muitas voltas e a gente não sabe onde vai estar amanhã. Queria dizer que tudo isso é passageiro, que vai ficar tudo bem, feito criança pequena que a gente põe no colo depois do pesadelo. Mas eu mesma não acredito nisso. Ficamos, o médico e o monstro, assombrados por esse pensamento fantasma de vagar nesse estado de inconsciência pra sempre. E a vida é como é, São Nelson não me deixa mentir. Estão aí, pra quem quiser ouvir, as muitas histórias de pessoas para as quais simplesmente não passou. Mesmo depois de dez, vinte anos. Mesmo depois da vida toda. Mesmo em outra vida. É um preço muito caro, eu sei. Entretanto, talvez assim Frank aprenda a ser menos medroso. De todos os sentimentos paralisantes (inércia, covardia, ignorância, inconsciência, inveja, orgulho, etc.), o medo é provavelmente o pior deles, porque se autojustifica. E ele, meu monstro, vai seguir assim. Fora do trilho, anjo caído, como alguém que simplesmente estava no lugar certo, mas na hora errada.
Frank não consegue esquecer nem se conformar.

PS: Não se preocupe. Talvez Frank ainda precise escrever mais uma ou duas mensagens, só pra desabafar ou se recompor, mas ele não pretende ser inoportuno, muito menos perturbar a calma de ninguém. Ele só está tentando entender, como a maioria das pessoas, pra onde estamos indo e qual o sentido dessa merda toda.
PS2: Saudades. Frank idem, óbvio...

Carta sem bússola

E eu que a ti cheguei sem ter de mim partido, me pergunto agora, o que é pior, de quem roubei o verso pretendido?
E eu que a ti cheguei sem ter de mim partido, repito a frase remota, remonto o moto contínuo.
E eu que a ti cheguei sem ter de mim partido, escuto de longe o canto do pássaro vizinho, longe vou eu, sem lastro, com o pensamento perdido.
E eu que a ti cheguei sem ter de mim partido, parei pra ver no cinema a vida passando em luz, enquanto da platéia se amorfam sentimentos desmedidos.
E eu que nem a ti cheguei depois de já ter há muito de mim partido, sonho o sonho sereno do contemplativo e plácido luto construído.
E eu que de mim parti sem ter idéia do alvo a ser alcançado, faço o caminho de volta arrastando o coração destruído, a alma remendada e o amor perdido.
E eu que de mim parti sem ter a lugar nenhum chegado, olho com o vazio do olho o ermo de dentro e penso: pra onde foi o ser amado?

#1!

O "Cartas de Hades" pretende ser apenas a ligação entre esse mundo e o reino da outra margem, um arquivo de textos antigos, os contos, as resenhas, as insônias, a fúria e os poemas, e mais os novos. Aproxime-se. A Barca de Caronte já vai partir...