quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Insônia

A porta estava fechada. Uma porta fechada pode ter muitos significados e ele permaneceu de pé diante da porta, hipnotizado pelos laivos da madeira. Em suspenso por uma porta.
A pouca luz do corredor aumentava a ilusão de ótica e ele podia ver, com um pouco de esforço, a imagem que quisesse esfumaçada nos reflexos do verniz. Aos poucos, no entanto, seus olhos foram baixando até seus próprios pés descalços e foram se voltando pra dentro de si e do tempo. Ouviu a voz de Billie Holiday cantando “You’ve changed”.

You’ve changed…

Assiste vários slides passarem por trás da testa, a memória feito colcha de retalhos. Viu a paisagem da Quinta da Boa Vista, outonal e nublada. Lá iam pelo menos uns cinco anos. Ou mais. Ele andava pelas alamedas como se fosse o próprio imperador. Sentia uma alegria morna de estar ali, um lugar que já havia povoado pesadelos de infância. O pai tinha mania da Quinta e mania só aos domingos, o que não ajudava. Dessa vez ele estava feliz. Orgulhoso. Só de olhar pra ela, tão bonita, o vestido branco...

That sparkle in your eyes is gone

Muda o slide de seu pensamento. Chega ao momento exato em que se conheceram. Ele voltando pra casa bêbado, oito horas da manhã, fedendo a conhaque e perfume vagabundo. Ela de patins na contramão. Quando conseguiram levantar do meio-fio, ele cambaleante e ela estreante, desculpou-se pelo mau jeito e ela apenas lhe sorriu.

Your smile is just a careless yawn

Um sorriso doce que ele havia de ver muitas outras vezes. Inventaram jogos só deles. Como voltar pra casa brincando de adivinhar o filme. Ela dava as pistas. Ele era péssimo jogador. Dizia coisas do tipo “ah, sei sim, é com aquele ator que sempre faz papel de vilão e trabalhou com o tal diretor moderninho daquele filme que foi o maior sucesso”. Ela fazia beicinho e respondia que ele não sabia brincar, que não prestava atenção ao que ela dizia.

You're breaking my heart

Outro slide. Nus os dois, na beira da estrada do Recreio dos Bandeirantes. Vidro embaçado. Ele querendo ainda preservá-la, o macho protetor. Ela, zombeteira, querendo descer do carro e ir pedir benção à Iemanjá. Nunca soube resistir, não a tamanha entrega, ela era sua, e cada beijo lhe enchia de desejo e temor.

You've changed

Pra ela, o amor era mesmo sempre e tanto.

You've changed

Ele tinha pena do ciúme que a fazia sofrer. Slide: festa de ano-novo. Ele encontra com uma ex e não consegue cortar a conversa. Ela estranha a demora e vai atrás. Vê a outra, já a essa altura adversária em potencial, e se enfurece. Aproxima-se com um sorriso nos lábios e diz: “nossa, você estava demorando. Senti sua falta”. Segura-o pela gola da camisa, põe a mão entre suas pernas e lambe-lhe o pescoço. A ex inventa uma desculpa qualquer e se afasta. O sorriso desaparece do rosto dela. “Puta…”, resmunga baixinho.

Your kiss is now so blasé

Tenta encontrar outro slide. O da última vez que a viu sorrir.

You're bored with me in every way

Não consegue. Vasculha a memória. Quando foi a última vez que ele a teve em seus braços? Ou que ficou velando seu sono?

I can't understand

Nem sequer consegue recuperar o motivo da última discussão. Lembra apenas de ter se espantado com a quantidade de “porras” e “caralhos” que ela atirava em todas as direções.

You've changed

Lembra de não conseguir esquecer. Lembra de não perdoá-la pelas amantes que teve depois, nem as noites de insônia como essa de agora, costurando cacos de memória em pé no escuro. Lembra que esqueceu de tentar amá-la.

You've forgotten the words I love you

Minados de mágoa. “Tem um tradutor na casa? Porque eu realmente não consigo entender o que diabos você diz”.

And each memory that we've shared
You ignore every star above you

Porcaria de arquivo, só slides ruins. Melhor voltar a tomar Biotônico. Numa das brigas, ela o acusou de ter-lhe roubado a juventude e a beleza. Que ele fora egoísta, canalha, tinha usado e abusado do amor que ela teve um dia. Que ele estava aquém do que ela merecia e na cama... Ah, ela fingiu sim. E muito. Ele a esbofeteou.

I can't realize you ever cared

Riu de si mesmo. Tinha perdido o fio, da meada, do pensamento, do casamento e do propósito de estar de pé ali no corredor diante da porta. Uma porta fechada pode ter muitos significados. Olhou de novo. Uma porta. Ele podia ver a imagem que quisesse esfumaçada nos reflexos do verniz. Podia vê-la na cama, do outro lado. Uma porta bem fechada. E ele resolveu voltar pro sofá.

You've changed
You're not the angel I once knew
No need to tell me that we're through
You've changed.

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