quarta-feira, 13 de outubro de 2004

DIA DE JOGO

Heitor entrou no Estephanio’s arrastando os pés e com uma estranha expressão no rosto, um misto de cansaço e tristeza. Sentou-se no lugar de sempre, na varanda lateral, e atirou sobre a mesa o conteúdo dos bolsos da calça: carteira, chaves e um celular desligado. Permaneceu mudo quando o garçom perguntou-lhe se queria o de sempre. Alguns conhecidos vieram cumprimentá-lo e também tentaram arrancar alguma coisa da figura que permanecia parada com a cabeça nas mãos, mas sem sucesso. Heitor não se movia, não falava, não respondia.

Começou o falatório. Uma rodinha se formou dentro do bar, ao lado do balcão. Observavam o Heitor pela janela de vidro fechada.

— Que é que houve?

— Alguém ouviu falar alguma coisa?

— Acho que veio direto do serviço, tá de paletó ainda.

— Mas ele não estava em São Paulo?

— Diz que chegava hoje.

— No escritório não passou. Liguei pra lá de tarde e ele não tava. E o celular passou o dia caindo na caixa postal.

— Direto?

— Não. Chamava, chamava, e ele não atendia.

— Devia estar filtrando.

— Porra, mas hoje é dia de jogo!

— Por isso ele tá aqui. Pelo menos não sumiu de todo.

— Jogo do Vasco ele não perde.

— Também não deixava passar mulher até a Vânia aparecer.

— Deixa de ser escroto, rapaz. Não tá vendo o estado do sujeito?

— Calma lá pessoal, não vamos brincar com coisa séria.

— Não tem ninguém de brincadeira aqui. O cara é nosso amigo e tá visivelmente na pior. E eu aposto um contra cem que foi a puta da Vânia.

— Cala a boca, mané. Já pensou se o cara escuta?

— E uquequiagente faz?

— Nada. Espera.

— Ah, não. Eu num güento ver um homem desse tamanho assim.

— Fazer o quê?

— Pensar num plano. Ele é camarada, sempre foi. E se um de nós chegar lá desfiando tragédia? Capaz dele largar um pouco a própria pra dar o ombro a um amigo.

— Boa. Quem vai?

— Eu não posso. Tou devendo a ele dinheiro do casado semana passada.

— Também não posso. Deixei uns quinze recados no escritório e ele nada. Comigo não quer mesmo conversa.

— Vou eu então.

— Você?

— É.

— Mas vocês nunca foram muito chegados...

— Melhor. Pego ele de surpresa. De mais a mais, com as Bohêmias na mesa, tanto faz se sou eu ou o Genival Lacerda.

— Vai fundo.

— Mas pega leve. Não fala da Vânia...

— Como não fala da Vânia? Tá na cara que foi essa filhadaputa que aprontou com o sujeito.

— Inocente até surgirem provas em contrário.

— Larga a mão da conversinha, doutor. Todo mundo aqui no bar conhece muito bem a tipa.

— E você ainda quis conhecer mais a fundo, né?

— Olha aqui, ô seu...

— Êpa, êpa! Devagar! Não vamos arranjar mais uma arenga.

— Verdade, sim senhor! E se não gostou, pode cair dentro!

— Larga a mão de ser otário!

— Evaristo, vai lá de uma vez, anda, e vê se acaba com o nosso suspense.

Evaristo sentou na cadeira em frente ao Heitor, mas virou-se pra rua, de modo a não afrontar muito.

— É, meu velho. O bicho anda pegando.

— ...

— A maré não anda mesmo pra peixe.

— ...

— Tá bebendo o quê?

— ...

— Escuta, o jogo começa daqui a pouco. Daqui a gente enxerga bem a TV, mas você não prefere tomar uns tragos comigo? Larga essa porcaria aí que eu vou pedir o que preste. Erasmo! Traz logo duas de saída e não deixa o copo do Heitor vazio!

— ...gado.

— Sabe, eu ando triste que só. A gente às vezes custa a entender que raio de esforço tem que fazer nessa vida pra ter um bocadinho justo de alegria. Cê não acha Heitor?

O Heitor não achava nada. Evaristo tentou de todo jeito, mas nada surtia efeito. O infeliz continuava com uma cara de enterro, enfurnado num sofrimento sem fim, escondendo as mãos no rosto pra não mostrar as lágrimas. Mas o Evaristo ficou preocupado mesmo quando o jogo estava prestes a começar. O Heitor deu um gemido fundo e ameaçou levantar.

— Fica aí, rapaz... Agora é que vai dar a partida!

— Deixa eu ir...

— Olha, o jogo de hoje é contra o lanterna, você sabe. Vai ser de goleada. Fica aí, rapaz, que nós vamos lavar a alma hoje!

— ...

Heitor passou o primeiro tempo assistindo o jogo por trás dos dedos entrelaçados com força, feito criança que não resiste a espiar o filme de suspense. No intervalo, o placar era dois a zero pro Vasco e o Heitor, a essa altura completamente de porre e animado pelo resultado, começa a falar.

— Pois eu te digo... O que salva é o futebol. O que salva é a cerveja. Os amigos! Os amigos também, mas principalmente o futebol. Tá vendo esse monte de barbado aqui em volta? Bando de frouxo, isso sim.

— Fala baixo, Heitor... E o Morais hein? Podiam escalar o garoto na lateral, te garanto que era mais negócio pra nós...

— Tá jogando contra o patrimônio, rapaz? Ele precisa ficar onde mais se desenvolva, ali na armação mesmo. Colocar um garoto com esse talento, numa função burocrática, só na base do corre-corre-corre, cruza-cruza-cruza, volta-volta-volta e marca-marca-marca é um tiro no pé!

— É pode ser. Mas o garoto é versátil, livrava a gente de uma mala das grandes... há controvérsias...

Segundo tempo rolando.

— Só o futebol, Evaristo. Frouxos. Boiolas. Vi-a-dões! Só são machos aqui, coçando o saco nos cornos uns dos outros!

— Pára com isso, Heitor.

— Mas eu não. Eu não! Eu já aturei muito! Já comi muita merda nessa vida! Mas eu sobrevivi! Eu vou enterrar todos esses imbecis que tentaram me fuder! Todos! Eu sobrevivi! Eu sou vascaíno, safo, comigo ninguém pode! Não vai ser um diazinho mais ou menos que vai me derrubar! O Vascão taí pra provar isso, Evaristo! Dois a zero pro Vascão! Vaaascooo!

Não passou nem um minuto e... gol do adversário.

— Porra, que golzinho de merda! Como é que vocês deixam esse sujeito passar assim, enfileirando?

— Calma, Heitor. Tá dois a um ainda. Daqui a pouco o Vascão faz mais outro. Vamos apostar? Três a um pra nós. Que tal?

— É isso aí. Vascão! Eu sou o rei da colina, rapaz, ninguém vai me derrubar! Futebol, mano, futebol é o que salva. A redenção das bestas-feras. A salva-guarda dos desvalidos! Vou mijar, tô nervoso.

Teve um piripaque no banheiro. Jurou que viu a Vânia sentada na varanda do bar, no colo de um sujeito. Começou a suar frio. A mão ficou gelada e tremendo e não acertava mirar o pau de jeito nenhum. Era a Vânia? Mijou na tábua que respingou no sapato, ficou mais nervoso, alguém gritou gol, quis fechar o zíper de uma vez, mas ainda saiu um último jato que molhou bem a frente da calça. Quem gritou, cacete? Foi gol de quem? Pegou uma toalha de papel pra limpar, não era possível que fosse a Vânia. Melhor espiar devagarzinho, mas o banheiro deu um rodopio e duas meias-voltas, ele bateu a cabeça no batente da porta e um filete de sangue escorreu pela testa. Saiu cambaleando.

— Goooolll! Mais um!

O cara que gritou dessa vez era um barbudo de dois metros de altura que estava de camisa verde. Verde? Não é possível. Então não foi gol do Vascão? Cadê a piranha que estava na varanda? De quem foi a porra do gol? E o outro, era replay? A cabeça doía e o sangue escorria pra dentro do olho esquerdo, pela cara abaixo e caía na camisa branca. Atravessou a varanda e nada da Vânia. De quem foram as porras dos dois gols? Deu a volta no bar até a própria mesa. O Evaristo levantou, lívido, já sendo agarrado pelo colarinho.

— Era ela, Evaristo?

— Calma, Heitor.

— Era ela, Evaristo?

— Era.

— Cadê?

Gol. Gritaria. O parrudo de verde rindo, com os braços pro alto.

— Cadê ela, Evaristo? Cadê ela, porra?

O juiz apitou o fim do jogo. O Vasco perdeu por quatro a dois. Outros cinco de camisa verde davam pulos e berravam como hunos.

— Fala Evaristo!

— Ali.

Apontou o grandalhão que comemorava. De repente, de trás do sujeito, aparece a Vânia. De Verde. Enlaça o pescoço do troglodita e comemora com um beijo na boca.

Heitor foi visto indo embora uma hora depois, algemado. Não sem antes deixar um cheque pra pagar os prejuízos do bar. E com as duas mãos quebradas. Dizem até hoje que o mal da Vânia foi a camisa. O Heitor agüentaria qualquer coisa. Mas de verde foi demais.

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