segunda-feira, 22 de novembro de 2004

Insônia III

Trilha: SCRIABIN - LE POÈME DE L’EXTASE, OP.54
Pra Milena

Hoje eu tava vendo você dormir e foi como se um vento frio passasse no meu coração, através de uma janela empenada que eu tento, tento, mas não consigo fechar, fica sempre meio aberta, eu já te contei um pouco sobre isso, que me dá calafrio, você é muito pequena, o meu amor é muito grande, o meu coração é muito, muito feio, não que nem o de toda gente grande, um pouco assim também, mas errado que nem o meu eu tô pra ver ainda, só você faz, só você, com que eu pareça um pouco menos inepta, por isso eu gosto de te espiar dormindo e o vento sopra sem parar.

Não sei se você foi feita pra esse mundo, esse mundo com certeza não é meu, se for de alguém, que esse alguém se pronuncie, alguém tem que cuidar do que é próprio, como eu cuido de você, mas desse mundo de ninguém quem é que cuida, essa nau desgovernada no meio da incúria humana, e foi bem nele que nós caímos e eu queria que tivesse jeito aí eu fico com uma pontinha de esperança, não é possível o nunca, detesto todo o irrefragável, e nunca vão deixar a gente pensar em paz e bate daqui e dali, todos os lados apanham e só a rafaméia é que não entende lhufas, como sempre, e esse vento frio fica me lembrando o tempo todo que eu não sei qual é o certo, que ninguém quer ter filho néscio, presta atenção, pra sofrer na mão dos outros antes eu do que você, antes eu sempre, em qualquer situação, mas não consigo te incutir o mal, me dá arrepio, você é muito bonita pra ser menos boa, como é que eu vou saber se devo te ensinar a se defender, como saber se devo empedernir a tua casca?

Melhor vestir um casaco e parar de pensar besteira, fico com insônia e as minhas razões fatigam-se, os olhos ressecam e enxergam torto, mais torto que meu nistagmo, de madrugada só o opróbio se sustenta e não adianta sair pelo reino de Morpheus atrás de alguma honra ou virtude que elas só existem em contraposição, só existe a graça depois da angústia, eu ainda tenho que agradecer por chegar em casa inteira e fico o dia inteiro longe de você imaginando as piores coisas, preciso ver menos TV, as vicissitudes morais se realimentam no coletivo, e a gente se sente mais de um na frente de uma TV, tem gente até que só dorme com elas ligadas de tanta solidão e não percebe que os pensamentos se liquefazem, os temores empedram e cada vez existem mais frinchas na alma prestes a rachar.

Na dúvida entre te ensinar a gostar de passarinho ou brincar de atiradeira, entre torcer pela princesa ou pela bruxa, entre se deixar usar ou chutar cabeças, entre essas e tantas outras dúvidas, eu vou estar sempre errada. Sei agora que sempre vou estar errada e não será por ignorância, mas por opção. Prefiro assim. Se eu estiver certa, nós duas não pertencemos mesmo a este mundo, e não cabe a mim erguer teus muros, infelizmente, os meus ficaram altos, altos demais. Errada, filha minha, mas sempre do teu lado.

Um beijo da Mamãe.

3 comentários:

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado

Juliana Bardusco disse...

Nossa Mari, que coisa mais linda...
Parece que fica todo mundo miudinho diante de tanto amor.. Aquele que faz a gente lembrar como a vida é bela e preciosa...

B. disse...

É, Zuzuzu...
Um amor do tamanho da vida. =]