sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Entrar pra perder

— É o que eu te digo, Alfredo. Só otário entra pra perder.

— Também não é assim, Nestor. Existem diversas razões pra um cara entrar meia-bomba num jogo.

— Me diz umazinha só.

— Ué, às vezes o cara já sabe que vai perder. Ou nem perder, mas já sabe que boa coisa não vai dar. Aí o melhor é economizar recurso e energia pra uma oportunidade realmente boa.

— Então, já que está na merda, liga o “foda-se”?

— Por aí.

— Nunca ouvi tanta asneira junta, Alfredo. Imagina se esse sujeito hipotético que você inventou fosse a regra. Como ia ser? Primeiro que ninguém casava, o mundo ia ser gay, a única forma de comunicação perfeita que existe. Título de eleitor virava artigo de colecionador. Companhia de seguro, faliriam todas. Campeonato ia ser decidido na primeira rodada, quem perdesse na primeira e já ficasse pra trás nem precisava jogar de novo. Atletismo então? Não existiria o gosto pela superação, o treinamento incansável, ninguém batia recorde! Não existiria o famoso sprint, a arrancada final. Não existiria emoção, virada... Quer saber? Não existiria torcedor!!

— Você está exagerando...

— E não existiria, principalmente, o vascaíno. O vascaíno, Alfredo, é uma esfinge. O que sofre e ama, como agüenta é um mistério, mas continua sempre ali, impávido. Percebeu? Espanto, meu caro, espanto! O Vasco é o time da virada porque ninguém crê tanto como o vascaíno. Jogo do Vasco só esvazia quando o juiz apita. Até os quarenta e quatro e meio tem nego torcendo. Apesar de tudo, apesar até do Bruno Lazaroni. Te digo mais: o que estão fazendo com esse time não é só uma simples questão de cagar o campeonato desse ano. Esses caras estão manchando uma história, destruindo o futuro. Estão esvaziando as arquibancadas dos próximos trinta e cinco campeonatos! Estão evitando a paixão de outros guris. Tem criança olhando, Alfredo! Do mesmo jeito que eu já estive, que você já esteve, como meu filho estava hoje. Com que cara eu olho pro moleque? Sabe o que ele me perguntou outro dia? Virou-se pra mim e disparou: “Ô pai, o Vasco é assim feito Atlético, que tem um monte? Porque esse daí não parece nada com o Vascão que você fala. Esse é do outro?”. Do outro! Ele acha que tem mais de um tipo, que eu falo de um time que não existe mais, que não é aquele que ele vê jogar, Alfredo! Nada justifica entrar pra perder!

— Tudo bem, Nestor. Mas teu caso é diferente. Não dá pra comparar o time do Galvão e a tua linha de passe com a Alzira!

— Como não? Como não? Raciocina, Alfredo. Ela também tá entrando pra perder! Não prestaste atenção numa vírgula do que eu contei, seu pulha. Prestenção: a Alzira disse que teve um pressentimento, uma visagem ou como seja, de que nosso relacionamento ia pelo ralo. Por isso resolveu fazer boicote, piquete, chochar a coisa toda. Não adiantou nada. Eu continuei firme. Ela dormiu de calça. Eu firme. Ela deixou as cuecas sujas empilharem. E eu no amor. Cozinhou jiló cinco dias seguidos. Virou evangélica, e eu resistindo, amando, amando... tirava o telefone do gancho e fingia que falava com outro homem e eu rindo na extensão, sabendo que do outro lado só tinha o tu-tu-tu de ocupado. Banho? Que banho? De gato, e olhe lá. Colocava vinagre nas minhas garrafas de Magnífica, mastigava dente de alho o dia inteiro, pra eu não chegar nem perto. Disse pra vizinha, bem alto pra eu ouvir, que o nosso caso está na hora de acabar. Dolores é apelação, Alfredo! Hoje ela exagerou: ameaçou botar um pôster do Beto na parede. Mas não levou adiante, essa nem ela mesma agüentava. Também aí nem era separação, era homicídio.

— Mas então o que é que você vai fazer agora?

— Sei não. Mas eu não entro em jogo pra perder. Dessa mulher eu já quis tudo, já roubei a alma, tive o coração dela na mão, rapaz. Mistura uma calcinha dela no meio das de outras trinta mulheres e eu acho de olho fechado. Eu conheço minha flor de cor e salteado. Nem me sei longe dela...

— Há malas que vão para Belém, Nestor. Quem sabe é melhor assim.

— Perder a Alzira? Pirou! Perder por que pode ser que um dia talvez quem sabe a gente se separe? Faça-me o favor. Vergonha cresce na minha cara junto com a barba, meu chapa. Me aguarde.

— Que vai fazer?

— Xacomigo.

Um mês depois, os dois amigos se esbarram de novo na saída do jogo.

— Ô Nestor! Quanto tempo! Como é que vão as coisas? Você tá com uma cara ótima, rapaz! E a Alzira?

— Alzira tá uma pétala. Só você vendo. Vamos às mil maravilhas.

— É mesmo? O que você fez? Milagre?

— Casei.

— Casou? Puxa, meus parabéns! Mas nem convidou, Nestor? Puxa vida, eu pensei que a gente fosse mais amigo... Já sei. Você e Alzira resolveram assim de súbito.

— Não, não foi bem assim.

— Ué... Então por que o mistério? Ninguém lá no bar comentou nada também.

— É que eu casei, mas...

— Mas?

— Não foi com a Alzira.

— ...?

— Eu casei com a Carminha.

— A tua prima boazuda?!?

— Prima de consideração, ô figura. Olha o respeito. A Carminha é irmã da Míriam, mulher do Osvaldo, esse sim meu primo.

— Mas péra lá... Não tem bem um mês você tava cabisbaixo, dizendo que não ia conseguir nem viver sem a Alzira... E agora casou com outra e ainda diz que ela tá ótima? Num tou entendendo nada!

— Sempre te achei curto de idéia. Mas eu explico. Lembra que ela teve um pressentimento?

— Sei. Que vocês iam se separar definitivamente e então ela começou a melar a relação de vocês pra não sofrer depois.

— Pois é. Casei com a Carminha pra tranqüilizar a Alzira, provando que ela estava certa. Mulher e cliente sempre têm razão, Alfredo, lembre-se disso. Contei que tinha um caso, que na verdade só começou depois, nós nos separamos, o presságio virou realidade e aí não sobrou mais ameaça nenhuma, já tinha acontecido. Compreendeu? Agora a gente pode namorar em paz.

— Macacos me mordam, eu nunca ouvi nada parecido com isso Nestor. Você ia perder a Alzira e agora não só ainda está com ela como casou com a Carminha, as duas mulheres mais desejadas do bairro!

— Na vida como no futebol, Alfredo. Pra não perder um jogo eu faço até gol contra pra acender os brios, pego rebote, contra-ataco, cruzo e finalizo. Espantei o tinhoso encarnando o cão! Eu não entro em jogo pra perder!

— É, Nestor... eu ainda volto a ver o Vasco jogar assim, que nem você. Vamos tomar umas brejas pra ver se você me ensina direitinho como é que se aplica essa filosofia... Por acaso a Carminha não tem outra irmã?

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