sexta-feira, 8 de julho de 2005

Rua dos Artistas: O efeito Leleco

Aldir Blanc

(publicada em 06/07/2005 no fabuloso novo CadernoB do Jornal do Brasil -


Um amigo foi internado em situação difícil num setor de Oncologia. No quarto para dois pacientes, a privacidade é precariamente garantida por um cortinado entre os leitos. Vozes sussurram com discrição no exíguo espaço destinado a meu amigo. Do ladelá da cortina, uma saborosa família suburbana, cheia de Iracemas, Janaínas, Aymorezinhos e Valdineys, comporta-se como se estivesse num piquenique em Paquetá. Discutem política e futebol, nessa ordem (isso, não se pode negar, o PT conseguiu); armam quizumbas homéricas com a enfermagem; incentivam o doente zonzo:

- Que cara é essa? O quê? Fala mais alto, pomba! Não vai tomar a sopa de entulho que a tia Candoca mandou na garrafa térmica novinha?!? Na-nã-ni-nã-não! Só uma colherada pra provar. Sabe quem vem amanhã? O Ednevaldo com as filhas, Vanessa Michelle e Gisleynalva Wanderléia. A Gis tá com uma barriga enorme, grávida. Dizem que foi um jogador do Vasco, tadinha...

De repente, silêncio. E aí:

- Tá chorando?

A voz quase inaudível do paciente:

- Eu queria ver o Leleco antes de...

- Antes de quê? Pensa positivo! O astral é tudo!

Choro ainda mais alto.

- Tô sentindo muita falta do Leleco.

Uma voz de mulher, resoluta:

- Olha, pai, vou te prometer uma coisa: amanhã eu trago o Leleco aqui ou não me chamo Edmilce Azuréia!

Meu amigo acompanha o drama. Quem será o Leleco? O filho pródigo? A ovelha negra? Traficante procurado? Parlamentar da base de sustentação?

Um homem troveja:

- Pai, o Leleco só faz ême, pô! Ta lá na dele, pouco se lixando pro teu estado. O vagabundo só pensa em si. A gente rala pra te visitar e você tá com saudade daquele pilantra, cacete! Vou tirar o time que eu não güento esse tipo de babaquice! Tu gosta mais do Leleco do que dos próprios filhos! Sempre foi assim. Um dia, eu perco a cabeça e dou um tiro no...

Bafafá, tititi, o estalo clássico de um bofetão.

- Olha aqui, Ozônio Carlos, tu pode ser PM, machão, o escambau, mas respeita o pai, falô? Sou muito mulhé de te arrebentá esses corne de cafetão!

- Calma, Terezinha Dulce! Aí, ó, o pai tá geral chorando de novo.

- Leleco... sniff... Leleco...

Uma voz fininha de criança:

- A gente pode trazer o Leleco na mochila da escola e passar correndo pela portaria, mas...

Suspense.

- ... e se o maluco do Leleco latir?

Pra surpresa das filhas, como se fosse o choro de raiva e vitória de um recém-nascido, meu amigo solta uma vasta risada, a primeira em meses.

A Morte, trajando um modelito Cruela Cruel, retira-se, humilhada. Apesar de seu poder devastador, morre de inveja dos frágeis seres humanos: enquanto os desvalidos acharem graça na desgraça, sua vitória não será completa.

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