segunda-feira, 28 de março de 2005

Morte por afogamento

Quebrei a porta da geladeira de tanto abrir e fechar. Desisti do gelo e passei pro caubói. Deviam vender tuas postas em conserva, drogas injetáveis têm muitos efeitos colaterais. Os pesadelos se agravam. Eu continuo morando nos teus olhos, tá tudo ainda assim queimando em mim, salvas e salvas de fogos, eu no Maracanã e você comigo, eu no metrô, no Largo de São Francisco, ouvindo Etta James, dançando jongo, bendito louvado seja, é o rosário de Maria, eu fora e sempre dentro dágua, no mesmo mergulho, na mesma sombra, no mesmo naufrágio.

Devo ter feito reza na feição do cão, eu pago sempre com juros, eu não esqueço, eu não durmo. Os sapos coalhando de desalento o peitoril da janela e eu cerzindo ferida de não poder mais, de ainda, de senão. Coração preso entre o fastio do sentimento e a intemperança do presente, estala, range, vai aos arrancos e soluços, não tem mais estrada que alente, se soubesse parar, parava, se soubesse correr, corria, se pudesse... se pudesse ia.

Anjo torto da minha fé descrente, Javé é compaixão e piedade, lento para cólera e cheio de amor. Fico desperto, gemendo, como ave solitária no telhado, com vela colorida na quarta-feira, tomo chá de camomila, erva-cidreira, não adianta, salta um coquetel, pantoprazol e limbitrol numa azulada, duas alcachofras, com bastante gelo, "shaken, not stirred", minhas mãos doem, as minhas unhas estão cheias de terra, eu cavo um poço por dia ou deixo esturricar, desaprendi de recolher, e as sementes se foram com as folhas do mulungu que as deita no vento antes de cobrir de flor... O meu rosário de contas – ave-marias negras, pais-nossos de arganéu – eu guardei na rede pra balançar tédio de varanda, calma fingida, e fui trançar os cabelos, fazer renda de fita, tirar pó, mecânica quanto raiada, ladrilhando a memória de pedrinhas de brilhante, ajibonã de minha própria alma, capataz dos meus desejos, algoz de minha calmaria.

É de espantar que os dias se sucedam, que chova, que esquente ou esfrie, que a comida estrague e que cheguem jornais novos se o tempo está parado. Um besouro pousou no meu olho.

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