Trilha: You are so beautiful - Joe Cocker
Ao ver o carro se afastar na estrada, levantando a poeira de barro seco, ela já sabia. Ele havia partido para sempre.
(You are so beautiful to me)
Senta-se na varanda e fica olhando o mar. Do alto da colina, é uma imensidão de água, uma tão grande que mais parece que o céu havia se deixado inundar. Mas algum impulso esquisito não a permite manter os olhos erguidos. A vista parece pregada na ardósia, nas pequenas formigas, nos próprios pés... do pé para a ardósia, da formiga para a franja da rede, da rede para o pé. Não é dor, nem saudade, nem angústia. Nem raiva.
Parecia mais com uma sensação penosa de humilhação. Está morta de vergonha. Mas do quê? E por quê?
(Can´t you see?)
Ele é que devia envergonhar-se. Passara a noite acordada ouvindo os barulhos que vinham da sala. Ou da cozinha. Ou da garagem. Os de todos os cantos. Ele quebrou a casa inteira. Com a talvez covarde exceção dos janelões de vidro, ele destruiu tudo. Copos, pratos, garrafas de cerveja (as de uísque ele bebeu), o rádio, dois abajures... No chão havia pedaços de coisas impossíveis de identificar, junto a restos de comida, poças meladas. Prateleiras foram derrubadas, livros rasgados.
(Such joy and happiness you bring, like a dream…)
Trancada no quarto, agarrada no travesseiro, ela tentava decifrar os sons. “Agora foi-se o espelho do banheiro”. De tempos em tempos, como se ele cansasse, só ouvia o silêncio e era aí que realmente se assustava. No entanto, ao contrário do que esperou a madrugada inteira, ele não chegou nem perto da porta. Sequer chamou por ela, ou pronunciou seu nome uma única vez. Dele só um som lamurioso, rouco e lancinante. Ele estava cego, surdo, alheio e enlouquecedoramente sozinho.
(You are everything I hoped for, everything I need)
Entre um prato e uma samambaia da varanda atirada sobre algo metálico (teria sido o teto do carro?), ela abrira a gaveta pensando em tomar uma meia dúzia de Lorax. Mas sabia que assim que o sol nascesse, ele pararia. Faltavam poucas horas. Resolveu esperar.
Alguns silêncios e uivos depois, ouviu o carro ser ligado, o som de arrancada e pneus cantando.
É... Suspira. Tenta novamente encarar o lindo dia de sol, o céu azul e... os olhos enchem-se de lágrimas e ela baixa de novo a cabeça. É mesmo vergonha. Não de ter se escondido, não de ter se trancado no quarto. Talvez, quem sabe, pudesse ter chamado ajuda, ter atirado-lhe uma cadeira, ou mesmo quebrado uma garrafa de Concha Y Toro no alto de sua cabeça. Não é nada disso. É vergonha de si mesma, apesar da certeza de não ter feito nada de errado, nada que pudesse ser apontado, nomeado, condenado. Vergonha de achar, ainda assim, em algum lugar lá no fundo, que ela bem que merecia. Ah, merecia... E ainda ia arrepender-se um bocado, seja lá o que fosse.
(You are so beautiful to me…)
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