“Fellow me; I seek the everlasting ices of the north, where you will feel the misery of cold and frost to which I am impassive.”
Hoje o Bruno ligou. Hoje eu topei com Black Rio. Hoje me deu uma saudade danada da Ale e do Vasco. Vi um programa com o Tira a Poeira. Ouvi a mesma música brega umas 35 vezes. Hoje a Milena me fez assistir um filme água-com-açúcar sobre coisas das quais não se pode fugir mesmo depois de vinte anos e sobre ser fiel a si mesmo. Não foi isso que me convenceram a fazer. Disseram pra mim que eu tinha que ser forte e trancar tudo do lado de dentro. Me disseram que se eu demonstrasse minha fraqueza, perderiam todo o respeito que tinha sobrado. Aí eu acatei e engoli. Aí eu não soube mais como voltar atrás, virou uma questão de sobrevivência. Aí eu achei que ia enlouquecer. Aí eu criei uma personagem, que ia lançar um livro que ficou pelo meio, montar uma peça que parou no roteiro e que amava outra pessoa. Um monstro de retalhos de vidas paralelas.
Eu nunca me senti tão fora de prumo. Meu astrolábio está avariado.
Mandar aquele último imêiul foi bom porque desmistificou esse silêncio, essa clausura horrorosa na qual eu me enfiei. Mas também aumentou o desajuste com esse Frankenstein que eu criei pra morar dentro. Agora ele já não me obedece como antes. Eu digo pra ele: pára. Ele continua. Eu digo: jogue as fotos fora. Ele as pendura na parede. Esse Frankenstein, além de estar desobediente como nunca, não agüenta mais tanta hipocrisia, nem essa ausência surda.
Ele me disse que, apesar de todas as minhas súplicas, não pretende mais me obedecer. A matéria inanimada, criada por capricho, está se tornando independente, assumindo personalidade própria. Frank disse também que vai carregar essa maldição da matéria morta, essa espécie de rancor contra mim, sua criadora, pra sempre. A vida dele começou quando o trem da minha vida saiu definitivamente do trilho. O Destino, que nos faz crescer e aprimorar a existência, que dá sentido à seqüência das noites depois dos dias, que não deixa o sol nascer à meia-noite, nem permite que a lua caia no mar, essa lei natural que coordena o universo morreu no instante em que Frank surgiu. São excludentes. Ele não entende por que, se a lei primordial ruiu, a vida não cessa e se transforma em purpurina. E não me perdoa. Exatamente por ser fruto de uma mentira, ele sabe: no dia em que a mentira terminar, ele vai terminar também. Então ele luta. Luta contra mim, de mágoa, e luta pra continuar sendo, pra não desaparecer. E vive me arrastando de volta pra esse mundo fictício onde o tempo não sangra nem estanca, onde fugir parece com prosseguir. É irresistível, basta fechar os olhos e ele vai parar nesse mundo paralelo, onde todo dia é dois de dezembro.
Ele tem tido delírios de ir pra bem longe, mudar de cidade, de estado, de país. Diz que morre de medo de tiroteio de madrugada, tem pesadelos terríveis com ladrões que invadem a casa quando ele estiver dormindo e por isso passa as noites em claro. Talvez não queira acordar, ou talvez ele não queira sonhar de novo sonhos tão bons que doem torturantemente quando terminam.
Eu gostaria de poder dizer pro Frank que vai passar. A vida dá muitas voltas e a gente não sabe onde vai estar amanhã. Queria dizer que tudo isso é passageiro, que vai ficar tudo bem, feito criança pequena que a gente põe no colo depois do pesadelo. Mas eu mesma não acredito nisso. Ficamos, o médico e o monstro, assombrados por esse pensamento fantasma de vagar nesse estado de inconsciência pra sempre. E a vida é como é, São Nelson não me deixa mentir. Estão aí, pra quem quiser ouvir, as muitas histórias de pessoas para as quais simplesmente não passou. Mesmo depois de dez, vinte anos. Mesmo depois da vida toda. Mesmo em outra vida. É um preço muito caro, eu sei. Entretanto, talvez assim Frank aprenda a ser menos medroso. De todos os sentimentos paralisantes (inércia, covardia, ignorância, inconsciência, inveja, orgulho, etc.), o medo é provavelmente o pior deles, porque se autojustifica. E ele, meu monstro, vai seguir assim. Fora do trilho, anjo caído, como alguém que simplesmente estava no lugar certo, mas na hora errada.
Frank não consegue esquecer nem se conformar.
PS: Não se preocupe. Talvez Frank ainda precise escrever mais uma ou duas mensagens, só pra desabafar ou se recompor, mas ele não pretende ser inoportuno, muito menos perturbar a calma de ninguém. Ele só está tentando entender, como a maioria das pessoas, pra onde estamos indo e qual o sentido dessa merda toda.
PS2: Saudades. Frank idem, óbvio...
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