Fausto Wolf
(como prometido, o lindo texto escrito pro Fernando e publicado no JB.)
Quando um homem mete na cabeça que quer fazer papel de idiota, dificilmente alguém pode obrigá-lo a mudar de idéia. Isso aconteceu comigo, quando fui convidado pelo PDT para disputar uma cadeira de deputado federal em 1990. Pedi dinheiro ao partido e disseram-me que eu tinha de dar-lhes certa quantia em dinheiro - mil dólares se não me engano - em troca de alguns bônus que eu me encarregaria de vender. Desisti na hora e, diante disso, eles desistiram de me cobrar a grana.
Só estou falando nisso porque no meu único (sei do cacófato) comitê na Rua da Lapa, 24, o Madame Satã, vinha muita gente trabalhar de graça. Um deles era um rapaz magro, desengonçado, voz característica, pois engrolava os érres, cabelo encaracolado, que parecia estar sempre de bom humor. Não devia ter mais de 20 anos. Ele ficava no comitê e distribuía material, instruía eleitores que quisessem me ajudar. Entre um comício e outro - sem que ele visse - ouvi-o explicar claramente a mais-valia e seus efeitos a um grupo de operários. Ficamos amigos e ele - como mais uma meia dúzia de moças e rapazes - tornou-se uma espécie de filho emprestado.
Eu e Fernando, este seu nome, jamais deixamos de manter contato. Nesse meio tempo, ele se casou com Áurea Alves, como ele, uma das maiores estudiosas de música do Brasil.
Autodidata, falava várias línguas e escrevia muito bem. Para dizer a verdade, ele estava entre os dez jornalistas que melhor escrevem neste país. Quando leu Joyce, foi paixão à primeira vista e não conheço ninguém que conhecesse melhor os truques literários do grande escritor irlandês. Porrista como o autor de Ulysses era coisa que Fernando também era, mas seu porre tinha uma alegria calma. Continuava inteligente. Gostava mais de escutar, sempre olhos fixos nos teus e um sorriso que demonstrava o incrível prazer que tinha em aprender algo novo. Era um prazer dar qualquer coisa a ele - de um chope a um livro - pois parecia que você estava sempre lhe dando o mundo. Morava na Lapa e o dinheiro lhe era de pouca serventia, pois o usava apenas para pagar suas contas, comprar suas canas e seus livros.
Atrás daquele garoto com cara de nerd gozador havia um grande filósofo encontrável, aliás, na resenha que publicou neste Caderno B, no dia 27 de julho último, sobre um livro menor de Herman Melville, Bartleby. Trata-se de um escrivão de Wall Street que descobre a mediocridade da vida que leva e começa a se recusar a fazer tarefas sem dar justificativa a não ser que a tarefa não lhe agrada. O homem negando-se a permitir que o transformem num objeto. Este era o Fernando. O que aos outros preocupava - sucesso, dinheiro, boa vida - estava em terceiro plano para ele. Um dia telefonou-me da Finlândia. Fora fazer um curso de projetista de instrumentação meteorológica para aeroportos. Explicou-me que era um trabalho que não o obrigava a pensar fora das horas de trabalho. ''O resto do tempo é para ler, escrever e ouvir música e beber.'' Não tinha um inimigo porque não discutia bobagens. Uma vez por mês bebíamos e eu tomava conhecimento dos seus progressos literários. Um gênio, tinha um cérebro privilegiado, um bom coração e não mentia nunca. Confirmação viva da minha teoria de que, se lhe derem o básico, o homem será feliz, pois nasceu para isso. Pretendo encontrar um editor para sua obra. Será o nosso grande póstumo.
Nos últimos anos perdi alguns dos meus melhores amigos - Albino Pinheiro, Elmar Machado, Ferdy Carneiro, Silvio Redinger, Jurij Moskvitin. Estes, porém, já haviam se preparado para a visita da sinistra senhora. Fernando Toledo morreu aos 37 anos, uma semana atrás. Às nove horas da noite. Três dias antes, fora atropelado na Muda por um irresponsável em alta velocidade. Conversei com ele em seu coma. Não respondeu. A morte levou um homem que tornaria qualquer rua, qualquer cidade do mundo um lugar melhor para se morar, um criador. Talvez houvesse descoberto coisas que não interessava ao Infinito revelar. Por isso o levaram. Como quem corta um talo de girassol com uma espada.
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