Não é nem muito novo, nem muito velho, mas continua atualizado, infelizmente.
Pasárgada vascaína
Luis Fernando Veríssimo escreveu, se não me engano em 1998, crônica em que comparava o desejo de Manoel Bandeira de ir-se embora pra Pasárgada — onde era amigo do rei —, com o sentimento nacional relacionado ao poder. Aspas:
“Para alguns, ser amigo do rei significa ter influência no governo, qualquer governo. Para outros significa ter dado o passo mágico com o qual, no Brasil, os que estão por fora passam para dentro. Ter transposto o balcão que separa os que atendem mal dos que são mal atendidos pelo Estado. O serviço público é a Pasárgada de muita gente, mesmo que, ao contrário da Pasárgada de Bandeira, não tenha tudo nem seja outra civilização, seja um serviço mal pago com pouco privilégios. Não importa, está-se ao lado do Rei, livre da danação de ser apenas outro cidadão brasileiro.”
O que o Vasco tem a ver com isso? Tem que lá, na nossa Pasárgada, até o rei quer ir-se embora, quer também ser amigo do rei. Cercar-se de reis. Entende? Os vereadores em torno dos prefeitos. Os prefeitos amigos dos governadores. Os governadores cercando os senadores. Os senadores com os desembargadores. Os desembargadores e... bom... os desembargadores e o Papa. Dizem que os desembargadores são os únicos fora de Roma que conhecem a verdade sobre o terceiro segredo de Fátima. Tergiverso, é verdade...
Esse é o caso. O presidente diz que Romário joga quando quer. Romário tem toda a compreensão do mundo com a dívida que ficou pra trás. O presidente antecipa a conquista de um título e a principal organização de torcedores não estrilou. Vê? O clube não interessa. O torcedor não interessa. Besta é tu, o que todo mundo quer é ser amigo do rei. Continua Veríssimo:
“Agora, Pasárgada mesmo, Pasárgada além da sonhada, é não ser só amigo do Rei, é ser da sua corte. Ser da minoria dentro da minoria que desmanda no país. Estar no centro dessa teia de cumplicidades tácitas que sobrevive a toda retórica reformista e enreda, suavemente, quem chega a ela, por mais bem intencionado que chegue. É uma confraria sem estatutos ou regras claras, uma confraria que nem bem conhece a si mesma. Você só sabe que está em Pasárgada, e que é bom. Como existem cemitérios de automóveis, Brasília deveria ter, nos seus arredores, um cemitério de boas intenções, descartadas na entrada da corte. O truísmo que todo poder corrompe tem sua versão brasileira: aqui o poder, além de corromper, ameniza.”
E, no caso vascaíno, ameniza também a vergonha. Ameniza a indignação, a responsabilidade alheia e a capacidade de cobrar. Ameniza o amor próprio. No Vasco, começando na diretoria, passando pelo MUV e terminando na FJV, a corrupção do poder expõe sua face mais cruel: é doce, como são as vinganças e homeopáticas como as primeiras doses do vício. Criou-se uma cultura de picuinhas internas, onde é mais importante azarar o rival que vibrar pelo próprio clube, e ainda por cima é condescendente com as próprias falhas. Uma cultura que insiste em forjar responsáveis, enxerga complôs e inimigos em todo lugar, numa esquizofrenia descontrolada e nunca, nunca olha o próprio rabo nem cogita ação direta. A verdade é que nenhum Leve e Souto sobreviveria tanto tempo no rival. Nenhum Wesquem?! sobreviveria tanto tempo no rival. E digo mais: no rival, o sujeito que conseguisse a façanha de perder todos os últimos grandes craques que passaram pelo clube por incompetência administrativa já teria tido a cabeça sumariamente cortada. No rival, um rombo financeiro dessas proporções e tamanha lapidação do patrimônio (considerando imagem e reputação como o patrimônio mais importante de qualquer clube) seria caso de polícia. E de que rival eu estou falando? De qualquer um! Qual-quer um! Exceção feita ao, como diz meu sobrinho, Curíntia, que hoje sofre com o Seu Sentadim como nós aqui sofremos com nossos fantasmas. Essa moeda parece ter duas faces distintas, mas tem uma só. Quem é a favor do atual presidente por conquistas e títulos do passado, pode até ter suas razões. Mas querer manter esse discurso sempre atualizado, esquecendo dos últimos vexames, é muito complicado. Acho difícil conseguir encontrar em qualquer vascaíno isenção e coerência. No fim das contas, situação e oposição se acusam de coisas semelhantes: ou se está fazendo o papel do cego que não quer ver ou vendeu-se apoio por pouca merda, a tal corrupção pela proximidade com o poder.
Da mesma forma, estar “sob as asas da FJV” hoje — só porque é bom estar cercado de uma grande torcida, só porque é bom sentir-se integrante e elemento ativo, ou então porque faz parte ter com quem contar se der porrada, ou lá o que seja a amoralidade do sujeito —, também é estar corrompido e cego. É querer ser a minoria dentro da minoria, como no texto do Veríssimo. Da mesma forma que reclamar da imprensa é ser simplista e não compreender que a imagem do clube e do torcedor vascaíno pode estar sendo transmutada para sempre (transmutação: formação de uma nova espécie através do acúmulo progressivo de mutações na espécie original) e isso vem de dentro pra fora. Da mesma forma, depois de tanta lenha na fogueira e tão pouca bala na agulha, o MUV devia rever os seus conceitos, isso pra dizer o só mínimo... Parece claro que alguma coisa não está funcionando como deveria.
Minha cruz-de-malta não tremula numa bandeira nem pisca num placar luminoso. Minha cruz-de-malta está incendida no peito, no meu coração, que é a minha Pasárgada, da qual não vendo nem arrendo um só pedaço, e aonde o rei sou eu.
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