Hugo Sukman
02/10/2005
Aldir Blanc grava disco e retoma histórica parceria com João Bosco
Quando João Bosco chegou ao estúdio o Aldir já estava lá. E também o Helinho com seu violão, o Cristóvão ao piano e o Mello, lápis, papel e prancheta em punho, desenhando tudo para uma futura capa.
Lá pelas tantas, depois de uns uísques já tinha até nego vendo a Elis lá, ouvindo tudo num canto, ou o falecido poeta Paulo Emílio chorando em outro, enquanto João e Aldir mandavam o samba em sua homenagem: “Eu gosto quando alvorece/Porque parece que está anoitecendo/E gosto quando anoitece que só vendo/Porque penso que alvorece/E então parece que eu pude/Mais uma vez outra noite, reviver a juventude/Todo boêmio é feliz/Porque quanto mais triste/Mais se ilude...”.
Não, isso não aconteceu em 1977 quando, no auge de sua parceria com Aldir Blanc, João Bosco gravou esse samba, “Me dá a penúltima”, no disco “Tiro de misericórdia”, com Hélio Delmiro na guitarra, Cristóvão Bastos ao piano e capa do artista plástico Mello Meneses (Elis Regina, principal intérprete da dupla, provavelmente passou no estúdio para visitar; Paulo Emílio, parceiro de João e Aldir, estava sempre por lá...).
Aconteceu, tudo inacreditavelmente como antes, ao anoitecer da última quinta-feira, num estúdio em Copacabana. Aldir Blanc gravava seu primeiro disco solo como cantor e seu parceiro João Bosco chegou para fazer uma participação. Ia cantar com Aldir e tocar, como fez, o samba- canção que dá título e conceitua o disco, “Vida noturna” (do LP “Galos de briga”, 1976). Mas veio de casa com essa surpresa, um arranjo novo de “Me dá a penúltima”, que acabou entrando no disco e fazendo todo mundo chorar ao fim da gravação rápida, impecável, de primeira.
— Depois dessa estou no limite emocional — confessou Aldir, do cubículo oculto no estúdio onde ficava seu microfone, ecoando o sentimento geral.
CD privilegia o cantor Aldir
Limite emocional viu-se a partir dali. Finda a gravação, João informalmente pegou o violão e surpreendeu a todos cantando a primeira música que ele e Aldir fizeram juntos após 20 anos da interrupção de parceria e amizade mais lamentada da história da MPB e que agora reencontrou de vez o prumo.
Trata-se do magnífico samba-canção “Mentiras de verdade” (letra ao lado), sobre a parceria dos dois, a briga e finalmente o reencontro. É primeira música que os dois fazem juntos desde a épica “As minas do mar”, de 1983 e lançada só em 87. “Quero esquecer de mim, ser mais você, menos do que eu...”, confessa Aldir, numa homenagem a essa forma de amor fraternal chamada parceria.
— As nossas parcerias transcendem o negócio da música — dizia Aldir, na conversa solta entre ele, João e seu mais constante parceiro atual, Moacyr Luz, aliás produtor e idealizador do seu disco solo. — Eu sou profundamente ligado aos meus parceiros. Se eu pudesse resolver a dor nas costas do João ou a dor na barriga do Moacyr, renunciando para isso a tudo que nós fizemos em música, eu não vacilaria um minuto.
“Mentiras de verdade”, que tem direito até a elegante citação a Tito Madi (“Mentira, foi tudo mentira...” ) não está no disco que Aldir acabou de gravar ontem. Estará junto com outras parcerias novíssimas da dupla, no CD de inéditas que João grava em fevereiro para o selo independente MP,B.
“Vida noturna”, o disco de Aldir, sairá ainda este ano pela Lua Discos, gravadora paulista que lança os discos de seu parceiro Moacyr Luz. A idéia de Moacyr, como o samba-canção-título indica, nasceu do convívio boêmio com Aldir.
— A gente tem a idéia desse disco há muito tempo — explica Moacyr ainda com a voz embargada pela experiência da gravação. — Quando todo mundo vai embora no fim da noite, vem o Aldir e pega o violão. E caramba, meu Deus, que histórias que ele canta. Histórias de noite, de chão. Aquele troço inusitado e espontâneo que há aí tinha que ser registrado.Além de “Vida noturna”, “Me dá a penúltima”, “Cordas” (com Guinga, já gravada por Leila Pinheiro), o bolero “Causa perdida” (com Rosa Passos, regravada por Alcione) e o clássico “Resposta ao tempo” (com Cristóvão Bastos, sucesso de Nana Caymmi), todas as outras músicas são inéditas. E inéditas de Aldir e parceiros muito em forma, o que fez João Bosco, depois de ouvir as novas músicas de Aldir, arriscar uma análise da obra do parceiro.
— O Aldir canta as histórias que ele inventa como ninguém — dizia João. — Ele observa o mundo que está em volta dele, a vida que está acontecendo e nada escapa ao Aldir. Ele faz isso com um brilhantismo de quem não teme a morte. Ele canta a vida o tempo todo e só utiliza a morte quando precisa dela para fazer um verso. A morte para ele é o trecho de uma calçada onde ele cai. A morte coincide com o paralelepípedo e é apenas um detalhe do cenário. Ninguém mais consegue escrever com essa total liberdade de alguém que não teme nada.
João se refere a coisas como o desmedido amor contido em “Dois bombons e uma rosa”, letra e rara música de Aldir, que diz: “Não há xampu, não há creme/Que apague ou que desmarque/Da tua pelo o meu beijo/Fedendo a conhaque”. Ou do soco-no-estômago “Lupicínica” (parceria com Jayme Vignolli) e seu cheiro de morte ao relembrar um amor por uma enfermeira do Salgado Filho “com a chama vital de Ana Karenina”: “Aquela mulher que dosava o soro nas veias dos agonizantes/Não teve sequer um calmante pra dor sem remédio/Que aflige os amantes”.
— Essas coisas acontecem num mundo blanquiano, único — diz João. — Essa poesia, essa generosidade, essa visão de mundo, essa loucura que mistura Tolstoi com esparadrapo, tudo isso é ele. E quando ele canta, canta assim.
Os parceiros, mesmo desfrutando da intimidade de ouvir Aldir cantar nas rodas boêmias, surpreendem-se de como ele está cantando bem.
— O Aldir nem precisava cantar como um cantor, ele é um criador e tudo se resolve a partir daí. Mas ele cantou como nunca vi em todos esses anos de convívio — testemunha Moacyr, emocionado com o fato de estar dando esse presente ao parceiro.
Mocyr concebeu um disco só de piano (sempre Cristóvão Bastos) e violão (normalmente João Lyra, mas com participações de Hélio Delmiro, Guinga e João Bosco nas suas composições), valorizando as músicas e o universo blanquiano. Como a primeira e histórica parceria de Aldir e Hélio Delmiro, “Constelação maior” (letra ao lado), uma lírica ode amorosa ao seu cachorro.
Aldir só gravara outros dois discos na vida, o histórico álbum duplo em parceria com Maurício Tapajós em 1985 e o CD comemorativo aos seus 50 anos em 1996. Emocionado depois de quase enfartar ouvindo o solo de Hélio Delmiro, Aldir tenta explicar por que resolveu sair da toca.
— Eu fiz 59 anos e tenho alguns problemas de saúde. Ao mesmo tempo minha vida nunca teve tanta beleza. Eu nunca gostei tanto de uma mulher como eu gosto da Mary (Sá-Freire, sua mulher há 20 anos, que chorava ao lado enquanto Aldir dizia isso). Eu gosto muito mais das minhas filhas, eu vejo também as duas que morreram em volta de mim. Eu tenho quatro netos que me suavizaram em relação a coisas que principalmente o João conhece bem, que é uma agressividade terrível. Eu fiz questão de vir aqui gravar o disco para que tudo isso não se perca.
Aos 59 anos, Aldir começa uma nova vida no auge da sua poesia e de sua voz, cercado pelos parceiros, até mesmo o que era impensável há tempos atrás, João Bosco. Os dois são prova de que sempre se pode começar vida nova.
Jornal: O GLOBO
Editoria: Segundo Caderno
Página: 1
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