terça-feira, 2 de novembro de 2010

Ainda

Trilha.

Ele transforma os fios de esperança em rastilhos, sempre voltados na minha direção. Ele suprime a minha voz e me enche de gritos envenenados de rancor. Ele condensa meus silêncios em nuvens que viajam vagarosas em horizontes de avião. Ele apaga a luz sem dar boa-noite. Ele desenha rachaduras caprichosas no que me sustém. Ele planta sonhos exaustos e jura florescência. Ele afaga meu cansaço com luvas de espinho, cobertas de veludo vermelho pra disfarçar quando o sangue cede. Ele é a cantiga da minha mente sem lembrança. Ele azeda meu comercial de Molico. É os beijos do outro, a boca alheia entre a salvação e o autoescárnio. É a lata vazia que zomba da sede. Ele é o que parece partir sem nunca ter ido. É o que parece estar sem nunca ter chegado. É o que transforma a fé em abandono. É o acorde que crucifica o compositor insone. Ele atravessa as madrugadas com pés de vento e zumbe mosquito no ouvido quando eu quero dormir. Ele chama meus demônios pelo nome. Mas é ele que faz o rio sair do curso e dá de beber ao tempo, que põe visões no olho do cego, que traz a própria dor pra estampar a dor do outro em nenhuma. É a primeira nota de Enrico Rava. É a hora entre a noite e a manhã. Ele é a condenação da face eterna.
Ele é o preço que eu nunca vou pagar.

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