Trilha: Melodia em lá menor – Tom Jobim e Astor Piazzolla (clica!)
Duas pequenas linhas se encontram com outras duas maiores e formam na calçada o desenho de um pássaro sem asas. Idéia besta, pássaro sem asa. Por que não ver borboleta, pavão, flor? Todo mundo sempre vê coisa bonita em rabisco e ela só via coisa engraçada. Pássaro sem asa devia ser galinha. Idéia besta. Mania de olhar pro chão, para as rachaduras do chão, para o craquelê do piso, reparar no desajuste harmonioso da rua de paralelepípedo e nos matinhos que crescem entre uma pedra e outra. Nuvem também. Adivinhar desenho de nuvem, ficar perdida no reflexo que a luz inclinada do outono deixa nas nuvens, brancas, cheias, cinzas, nuvens desenhadas, amarelas de sol. A desfolha das árvores cobre a calçada. E o pensamento, livre como só os devaneios permitem, passeia em pequenezas. No outono, os pensamentos amiúdam.
Uma rajada de vento, uma criança gritando, duas rajadas de tiro, a consciência retorna para o real, ainda não além da ponta dos sapatos, ensaiando retomar a caminhada. E ela o vê. Do outro lado da rua, um desconhecido vem andando na calçada.
Primeiro o ar adensa... e depois falta. Sente os braços pesados, os pulmões sumiram. O mundo pára, o tempo suspende e depois entra em slow motion. Ele vem na direção contrária, a passos firmes, com olhar preso num ponto à frente, como um objetivo. Alto, galhardo, de uma beleza estranha – que não é assim assombrosa, mas doída e pura como uma hegeliana certeza. Que a atingiu em cheio.
Ela, com dez anos, no pedalinho da Lagoa Rodrigo de Freitas, petrificada de medo de cair na água, mas com o olhar fixo no submerso cheio de peixinhos, sereias e tritões, convidando pra pular. Era ele.
Pisca os olhos uma vez, devagar, tentando respirar um pouquinho. Ele ainda caminha e consulta as horas no relógio de pulso. As mãos, de homem. O antebraço, de homem. O colarinho da camisa, o pescoço, a curva da mandíbula, o presumível perfume. A boca, igual, igual a daquele estranho que aparecia em seus sonhos: agachado ao lado da cama, passava as mãos nos cabelos dela e tocava suavemente a boca em sua testa dizendo “dorme, eu estou aqui; dorme, espera que eu estou chegando”.
Ela com treze anos na colônia de férias fingindo não achar um par de meias, matando o tempo, evitando ir até o refeitório com medo de ser rejeitada, excluída, pressagiando os maiores ridículos. Era ele.
Pisca mais uma vez e o coração se acelera com a falta de ar. Ele vira lentamente a cabeça e... olha pra ela! Não, na direção dela. Não, através dela. Não, não, apenas ao redor...
Ela na faculdade diante da folha de prova em branco, a folha, as respostas, branco, temendo o resto da sua vida em branco, cada resposta, cada décimo traçando à revelia o seu caminho imanentemente. Era ele...
Pisca agora lágrima. O desconhecido já vai de costas, o mesmo passo firme, constante, sua altivez, levando embora os sonhos, os delírios de menina, heróis de novela e vilões de contos de fada, Narizinho no Reino das Águas Claras, desvelo.
Súbito, ele estanca. Respira fundo com alguma resignação e olha pra trás. Observa a moça atônita na calçada oposta, intrigado. Move o olhar para as nuvens douradas, para o chão, de volta para a moça e, com certo afago, sorri um entendimento mágico. Ele então abaixa a cabeça, fita um ponto perdido no meio da rua e se desvira, seguindo adiante, com o mesmo passo firme, constante, decidido.
A moça ficou em suspenso ainda alguns minutos, entre atônita e perplexa, tentando entender o que havia acabado de acontecer. Quando finalmente conseguiu reconduzir-se, reparou que na calçada as linhas rachadas formavam a silhueta de uma mulher nua.
Tantos momentos preparatórios desses pouco mais de trinta segundos, e ela ainda assim não estava pronta pra vê-lo, perdê-lo e ter que seguir com a certeza de não tê-lo jamais. E, ainda assim, nada seria o mesmo novamente.
3 comentários:
Êita, Mari!!!!!
Voltou no auge! Voltou no auge!
É como eu te disse ontem, hein! Não deixe a Barca de Caronte parecer pedalinho encalhado nas gigogas... A gente precisa de teus movimentos.
Obrigado, beijo.
É... Vou assistir hoje o filme novo do Win Wenders.
Modificações e revisões feitas, acho que melhorou um bocadinho... Mas é estranho, né? Como a gente enferruja, ainda tá tãããão longe do que eu queria...
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