segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

GUARDE UM DIA DE SOL

Carta Vieja, Syrah, Chile. 2002.

Dentro da taça o vermelho escuro cintila.
Desceu e subiu as escadas da casa vazia centenas de vezes, procurando um não-sei-quê. Ia olhando as paredes como se, de dentro do branco fastioso e hipnótico, fosse ver projetado um filme, em super-8, lembrando o tempo em que foram felizes juntos, só os dois. E agora, José, meu Deus, meus sais, minha nossa, e agora?
Na segunda taça, revirou pilhas de CDs, procurando, procurando... silêncio. Não tinha lamento compatível pra ser trilha de tanta dor. Lembrar de comprar trilhas de filme, são boas nessas horas.
Na terceira, discou o mesmo número umas cinco vezes. Só tentou realmente completar a ligação na última vez e ainda assim desligou antes de saber se ia chamar, se ele ia atender, se o maldito ia tocar ou não.
A quarta taça atinou a pergunta... a garrafa vai toda? E se não for, como guarda isso? Tá um calor, se sobrar é melhor pôr na geladeira, junto do Gatorade.
A quinta taça entornou um pouco na hora de servir, porque o tal super-8 piscou na parede. Era uma cena besta, que provavelmente nem aconteceu. Os dois riam, muito, muito, aos cochichos, enquanto sombras em volta faziam pequenos muxoxos e gozavam da falta de graça da piada que só os dois entenderam. O mesmo riso cúmplice ganha outro fundo e são os dois na beira de uma lagoa, cor de sépia e em dia de sol. O filme teimava em travar quando as lágrimas desciam e ela evitava a todo custo chorar, engolindo a ausência pra não perder a graça daquela cena infantil que era a cara do amor dos dois.
Na sexta taça ela simplesmente quis morrer. O despertencimento, que é, reparem bem, categoria totalmente distinta da perda, porque esta passa e o outro se arrasta pra sempre, faz parte de seu sempre. E se ele esquecer do Pequeno Príncipe e largar o coração dela por aí, numa mesa de bar ou noutro engano qualquer? O coração já tão castigado, coberto de hematomas e lanhos, vai parar certamente de bater.
Na sétima taça, chorou tanto, quis colo, acendeu dois cigarros ao mesmo tempo e deixou os dois queimarem inteiros e teve que acender um terceiro, sofreu, não pode, não pode...
Encheu a oitava taça e pensou que se ele guardasse desse amor um único momento que o fizesse sorrir com aquele conhecido calorzinho no peito, não teria sido tudo em vão. Pegou papel e caneta, escreveu um bilhete: “Guarde um dia de sol”. Colocou num envelope, com uma das muitas fotos guardadas dos dois, sempre cheias de tanto bem-querer. Desenhou uma rosa vermelha na frente e deixou sobre a cama. Serviu-se da nona taça, que bebeu aos soluços pra conseguir engolir todos os comprimidos tarja preta do estoque mantido na escrivaninha, segunda gaveta da esquerda, de baixo pra cima.



Jamais comente o passado, siga os conselhos de Dalva.
Não há xampu, não há creme, que apague ou que desmarque
da tua pele o meu beijo fedendo a conhaque...

(Dois bombons e uma rosa, no CD Vida Noturna, de Aldir Blanc)


Telegrama
Toledo, diz pro Marco Aurélio e pro Miguilho que o CD não pára de receber elogios. Eu sei que vcs estão tão orgulhosos como nós estamos. Eu amo vocês. Beijos pro Roberto, vê se faz chegar também pro Ronald e pro Gilberto. Fala pra Dona Helena que o cara é foda e que as rezas continuam chegando sempre, como não poderia deixar de ser. Té já.

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