Aldir Blanc
(publicada em 06/07/2005 no fabuloso novo CadernoB do Jornal do Brasil -
Um amigo foi internado em situação difícil num setor de Oncologia. No quarto para dois pacientes, a privacidade é precariamente garantida por um cortinado entre os leitos. Vozes sussurram com discrição no exíguo espaço destinado a meu amigo. Do ladelá da cortina, uma saborosa família suburbana, cheia de Iracemas, Janaínas, Aymorezinhos e Valdineys, comporta-se como se estivesse num piquenique em Paquetá. Discutem política e futebol, nessa ordem (isso, não se pode negar, o PT conseguiu); armam quizumbas homéricas com a enfermagem; incentivam o doente zonzo:
- Que cara é essa? O quê? Fala mais alto, pomba! Não vai tomar a sopa de entulho que a tia Candoca mandou na garrafa térmica novinha?!? Na-nã-ni-nã-não! Só uma colherada pra provar. Sabe quem vem amanhã? O Ednevaldo com as filhas, Vanessa Michelle e Gisleynalva Wanderléia. A Gis tá com uma barriga enorme, grávida. Dizem que foi um jogador do Vasco, tadinha...
De repente, silêncio. E aí:
- Tá chorando?
A voz quase inaudível do paciente:
- Eu queria ver o Leleco antes de...
- Antes de quê? Pensa positivo! O astral é tudo!
Choro ainda mais alto.
- Tô sentindo muita falta do Leleco.
Uma voz de mulher, resoluta:
- Olha, pai, vou te prometer uma coisa: amanhã eu trago o Leleco aqui ou não me chamo Edmilce Azuréia!
Meu amigo acompanha o drama. Quem será o Leleco? O filho pródigo? A ovelha negra? Traficante procurado? Parlamentar da base de sustentação?
Um homem troveja:
- Pai, o Leleco só faz ême, pô! Ta lá na dele, pouco se lixando pro teu estado. O vagabundo só pensa em si. A gente rala pra te visitar e você tá com saudade daquele pilantra, cacete! Vou tirar o time que eu não güento esse tipo de babaquice! Tu gosta mais do Leleco do que dos próprios filhos! Sempre foi assim. Um dia, eu perco a cabeça e dou um tiro no...
Bafafá, tititi, o estalo clássico de um bofetão.
- Olha aqui, Ozônio Carlos, tu pode ser PM, machão, o escambau, mas respeita o pai, falô? Sou muito mulhé de te arrebentá esses corne de cafetão!
- Calma, Terezinha Dulce! Aí, ó, o pai tá geral chorando de novo.
- Leleco... sniff... Leleco...
Uma voz fininha de criança:
- A gente pode trazer o Leleco na mochila da escola e passar correndo pela portaria, mas...
Suspense.
- ... e se o maluco do Leleco latir?
Pra surpresa das filhas, como se fosse o choro de raiva e vitória de um recém-nascido, meu amigo solta uma vasta risada, a primeira em meses.
A Morte, trajando um modelito Cruela Cruel, retira-se, humilhada. Apesar de seu poder devastador, morre de inveja dos frágeis seres humanos: enquanto os desvalidos acharem graça na desgraça, sua vitória não será completa.
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