Trilha: Francanapa - Astor Piazzola
Dia 1
Se esse for o tempo, o tempo das flores e o tempo de viver só, pra cada adeus uma saudade e das saudades as razões se esvaem, brincam de orvalho, caindo serenas e manchadas de lua, transfiguradas em desvarios e de volta pra saudade.
Quantas serão as horas passadas ao largo, as horas mortas e as outras tantas trancadas no baú, em meio a pilhas de lembranças puídas, mofando no banheiro onde uma poça de solidão faz brilhar os azulejos sujos.
Dia 2
Da ponta dos dedos, um lumaréu estaciona no em torno. As mãos atadas por cordas de embira, os olhos cerrados e cobertos de nuvens, suor. Dos pés e pernas trançados em movimentos suaves, desliza o apaziguado coração, parcial enganador que suga de dentro do átimo sua pálida e fugidia segurança. Bestializado e cansado, o pobre apaixonado deixa-se levar pelo tango marcado, pisado, batido nas palmas, no susto, na alma e aguarda, clemente, que a cadência o redima, a cintura o vitime, de tal temor, de tanta despedida.
Dia 3
Como que caído de um buraco negro, o anjo pousou-se águia em seus ombros. Com as ofensas na ponta da unhas afiadas, cortou-lhe a pele, matou de novo o assassinado. Torturado este moribundo, exigiu outro sacrifício, ergueu o altar, ressucitou-lhe as carnes, mas não a pele. E cravou outra vez na vítima as garras envenenadas. Morrer morrendo.
Dia 4
Na quinta, foi domingo. E na sexta idem. Depois veio o sábado e o domingo foi uma quinta. E essa segunda? Vai ser sexta, provavelmente, mas não sei se teremos cadeiras para todos.
Dia 5
Cuspir na cara. É bom pra desabafar. Melhor do que chope, porque a tulipa é cara e na cara quebra. No duro. Dizem que se o cuspe é fino é boa saúde, mas se for grosso desliza melhor. Satisfação pessoal é subjetiva. Aliás, pessoal é subjetivo. Ninguém faz mais nada escondido e todo mundo ficou sabendo. Eles ficam sempre sabendo. Tem um que espia tudo. Finge que usa óculos, que tem mais idade e que compreende tudo. Disseram que foi viadagem, mas também podia ser disritmia. Buzinaram horas sem que ele respondesse, aí os grilos desistiram, entraram pra dentro da noite e a lua foi dormir.
Dia 6
Ab imo corde.
Dia 7
Um despropósito de silêncio veio antes dos pássaros. Quando eles invadiram o quarto, as paredes já estavam mudas. Só uma fronha pequena, com bordados na barra, dava um ou outro suspiro de vez em quando. As aves roxas e vermelhas chegaram juntas e tentaram fazer barulho. Nada. Só o suspiro da fronha. Aves vermelhas provocavam disparatadas as roxas que respondiam com ofensas irretratáveis, mas o breu de ouvido não cedia. Agitavam-se, grasnavam, crocitavam, arensavam, bramiam, batiam furiosamente as asas, misturavam-se às roupas no chão, chocavam-se com o ventilador, arremessavam contra os vidros e as treliças. Rasgaram os lençóis de seda brancos, derrubaram os quadros, destruíram o guarda vestido, loucas, furiosas com o silêncio irredutível. Não era mais um sem som, era um quebranto. Um avestruz apareceu de repente e bebeu sozinho uma garrafa de Balla 12. A pequena fronha deu o último suspiro.
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