quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Veias abertas.

... e aí quando eu faço elogio, ele diz que não acredita. Eu vou lá saber como é que pode! Já chegou mesmo a afirmar que não merecia, dá pra imaginar? Dia desses, em tom confessional, deixou escapulir de uma desavisada que teria atravessado anos sem dar valor. Eu, de minha parte, nada tenho com essas loucas que não pensam. Eu penso, penso sempre, penso muito. E vou além: eu o sinto. Como fosse parte, atávico e indivisível...



Ele me chega como os mercadores das histórias, trazendo romances e falsas promessas, com uma estrela em cada olho e marcando com sangue doce de putas arredias a sola dos sapatos.

Aparece sempre na hora grande da madrugada, soprando segredos indizíveis nos meus ouvidos. Veste túnica de oferendas, arrematada com o riso dos mares e bordada com fios brilhantes das lágrimas que ainda não derramei.

Deita-se ao meu lado e alisa meus cabelos, a pele de lápide disfarçando o coração sempre sôfrego, cheirando a musgo fresco, me beija em vaticínio, me despe com pudor, me cobre de sentenças.

De sua ausência brotam rios de lava, veios rasos e cruéis que jamais se fecharão.

De sua ausência brotam as raízes que rompem minha lucidez. Sorvo cada minuto, desato meus nós enquanto cedo e entrego e descanso e desço pelo poço profundo dessa insanidade chamada desejo.

Eu ainda o vejo, como no sonho que eu sonhei.

E ele, ainda assim, não acredita...

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Só agora é que me explicaram:

“À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, desde que tenhamos como característica desta raça comum, a inquietação que nos torna insuportavelmente exigentes com a gente mesmo e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, este adversário implacável.

Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade.

Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheios de ânsias e desejos, amam muito mais do que necessitam e recebem menos amor do que planejavam.

Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam ao concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam.

Desassossegados não podem mais ver o telejornal que choram, não podem sair mais às ruas que temem, não podem aceitar tanta gente crua habitando os topos das pirâmides e tanta gente cozida em filas, em madrugadas e no silêncio dos bueiros.

Desassossegados vestem-se de qualquer jeito, arrancam a pele dos dedos com os dentes, homens e mulheres soterrados, cavando uma abertura, tentando abrir uma janela emperrada, inventando uns desafios diferentes para sentir sua vida empurrada, desassossegados voltados pra frente.

Desassossegados desconfiam de si mesmos, se acusam e se defendem, contradizem-se, são fáceis e difíceis, acatam e desrespeitam as leis e seus próprios conceitos, tumultuados e irresistíveis seres que latejam.

Desassossegados têm insônia e são gentis, lhes incomodam as verdades imutáveis, riem quando bebem, não enjoam, mas ficam tontos com tanta idéia solta, com tamanha esquizofrenia, não se acomodam em rede, leito, lamentam a falta que faz uma paz inconsciente.

Desta raça somos todos, eu sou, só sossego quando me aceito.”

Martha Medeiros

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

In legend

W. H. Auden

Enter with him

These legends, Love;

For him assume

Each diverse form
To legend native,

As legend queer;

That he may do

What these require,

Be, Love, like him

To legend true.


When he to ease

His heart's disease

Must cross in sorrow

Corrosive seas,

As dolphin go;
As cunning fox

Guide through the rocks,

Tell in his ear

The common phrase

Required to please

The guardians there;

And when across

The livid marsh

Big birds pursue,
Again be true,
Between his thighs
As pony rise,

And swift as wind
Bear him away
Till cries and they

Are left behind.


But when at last,

These dangers passed,

His grown desire

Of legend tire,
O then, Love, standing
At legend's ending,
Claim your reward;
Submit your nec
k
To the ungrateful stroke

Of his reluctant sword,

That, starting back,

His eyes may look

Amazed on you,

Find what he wanted

Is faithful too

But disenchanted,

Your human love.




domingo, 19 de outubro de 2008

Mãos de homem

Pro Ike. =]

Ele tinha mãos de homem.
Mãos que seguram a moça na escada não porque ela precisa, mas porque não quer soltá-la.
Mãos que não deixam a moça cair, não porque ela é frágil, mas porque ele pode.
Mãos que estalam desejos na ponta dos dedos, em fagulhas de arrepios.

Ele tinha pulso de homem.
Pulso de quem agarra uma oportunidade pelos cabelos e não deixa passar.
Pulso de quem agarra um desafio pelos cabelos e não deixa de enfrentar.
Pulso de quem agarra a moça pelos cabelos e não a deixa nem querer escapar.

Ele tinha cheiro de homem.
Cheiro de coragem, de ternura, gradação de império.
O olfato imprimindo a ferro os passos para a memória,
e Ele... com cheiro de dádiva, de loucura, de impropério.

Ele tinha gosto de homem.
Um gosto de brisa, de devoção, quase punitivo.
De um homem assim não há partida,
se quer ser viva, luzir... e se tem motivo.